“Ir além do que simplesmente colocar as pessoas para trabalhar na empresa”, Andréa da Serasa Experian |
Em 2002, quando a atual sede do Serasa Experian foi construída, adaptações para a locomoção de deficientes já estavam previstas na planta. Facilidades como rampas de acesso ou algumas placas em braile são ajustes necessários para atender às demandas dos deficientes, mas que pouquíssimas empresas possuíam na época. A Serasa resolveu ir além. Foi construída uma série de acomodações essenciais para que o deficiente pudesse exercer seu trabalho. Entre elas, chão com piso tátil, telefone comunitário de surdo que responde por mensagem de texto, cartão de ponto com sinalização em braile e na altura adequada aos cadeirantes e softwares de leitura para cegos. Além disso, a empresa possui elevadores que respondem ao comando de totens com sinalização em braile e que “conversam” com o passageiro informando qual elevador ele deve pegar para ir ao destino solicitado.
Todas essas informações foram precisamente passadas pelo assessor de imprensa da Serasa Experian, Marcos Fidalgo. Ele é cego, mas, ao contrário do que muitos imaginam, essa não é uma barreira para Fidalgo. Ele atende aos pedidos de e-mail rapidamente, é preciso nas informações e acompanhou a nossa reportagem de uma forma cortês em todos os ambientes da Serasa Experian. Atributos estes requeridos na função.
Assim como o assessor, há muitos outros deficientes físicos que se tornaram referência na área onde atuam. Os desavisados diriam que personagens como Fidalgo venceram as barreiras físicas, psicológicas e do preconceito ao transformar dificuldades em vitórias. Mas para eles não há heroísmo na ação. Os resultados são frutos do desenvolvimento profissional aliado ao comprometimento dos negócios.
“O que as empresas querem são funcionários que cumpram metas e tarefas que os líderes deram. Elas querem aqueles que entregam resultados”, explica João Ribas, head de diversidade e inclusão da Serasa Experian. No mundo dos negócios, não há espaço para vitimização. “Do mesmo jeito que não temos nenhum problema em contratar pessoas com deficiência física, também não temos nenhum problema em demiti-las, caso necessário”, diz. Esse tampouco é o desejo dos mais de 45 milhões de deficientes no Brasil. “Nós temos pessoas que querem se encostar na própria deficiência, mas essa não é a maioria.”
Nem sempre foi assim
Apesar de grandes conquistas, muitas delas em decorrência da Lei de Cotas, hoje, pelo menos, ainda há a possibilidade de inserção do deficiente no mercado de trabalho, mas há trinta anos, isso passava longe das pretensões corporativas. De acordo com Ribas, as coisas foram acontecendo aos poucos. No final dos anos 1980, uma recomendação da Organização Internacional de Trabalho (OIT) sobre o tema abriu os olhos da iniciativa pública e privada.
Não é apenas o cargo de Ribas que o faz falar com tanta propriedade sobre o assunto, mas também sua experiência de vida. Ele possui uma deficiência genética que o fez enxergar o mundo sempre na perspectiva de uma cadeira de rodas. “Eu jamais acreditei que, um dia, alguma empresa quisesse me pagar alguma coisa para eu fazer o que faço hoje [colocar pessoas deficientes dentro da empresa para trabalhar]”, afirma. Há doze anos, Ribas recebeu o convite da Serasa para iniciar o programa de profissionalização da pessoa com deficiência. Até hoje nessa função, o executivo percebe o progresso que o tema teve nos últimos anos. Ele conta que quando jovem tinha dúvidas se um dia viria a exercer alguma atividade. “Nós que temos uma deficiência, até os anos 80, sempre fomos objeto de um isolamento institucional. Eram instituições que nos guardavam em algum lugar, do tipo asilares. Hoje é que elas se abrem e dizem que as pessoas têm de conviver na sociedade.” Ribas e mais alguns colegas também marginalizados pela sociedade resolveram reverter o rumo da história. Criaram um grupo de discussão sobre o assunto e ganharam o mercado de trabalho. “Pensávamos em nos inserir [na sociedade] sem a tutela e sem o paternalismo das instituições e da família”, explica. Ideais estes que até hoje são mantidos vivos na Serasa Experian.
De acordo com Andréa Regina, gerente de cidadania corporativa da Serasa Experian, a empresa tem uma preocupação verdadeira no que tange à inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. “Nós vamos além do que simplesmente colocar as pessoas aqui para trabalhar. A empresa se posiciona muito como uma empresa cidadã. Temos a missão de sensibilizar a sociedade para a questão”, relata. O primeiro insight da companhia sobre o tema nasceu em 2001, com a formação da primeira turma de deficientes em um curso de qualificação profissional.
Desenvolvimento profissional
É bom recordar que o treinamento, a qualificação profissional e o desenvolvimento de competências para o desempenho de tarefas necessárias ao dia a dia dos negócios não foram objetos de atenção de quem criou a Lei. “O maior entrave é a qualificação dessas pessoas. A empresa quer contratar, mas onde estão esses profissionais qualificados? Vivemos na época do apagão de talentos, então, encontrar pessoas com deficiência qualificadas é um problema ainda maior”, explica Andréa.
As empresas tiveram de enfrentar a seguinte situação: contratar deficientes físicos e treiná-los, mas como fazer isso? Esse foi o primeiro desafio que a Lei de Cotas lançou à iniciativa privada. As corporações tiveram de se apoiar em associações que já detinham o conhecimento do assunto. Foi assim que o Instituto da Oportunidade Social (IOS) garantiu a inserção de mais de 200 deficientes físicos em postos de trabalho em São Paulo desde 2009.
“Assim como as empresas, não conhecíamos nada sobre o tema. Fomos atrás de entidades que trabalhavam com cegos, que conheciam o mundo dos surdos e assim por diante”, conta Kelly Lopes, coordenadora do IOS. O instituto também fez benchmarking com outras organizações que atuavam na profissionalização do nicho. “Uma referência dessa época era a Serasa Experian”, indica Kelly. Por isso, em 2009, a empresa resolveu compartilhar a experiência de seu curso de qualificação profissional com a sociedade. Na proposta de formação profissional, os deficientes já seriam considerados empregados da entidade desde o primeiro dia de aula. Além de serem remunerados enquanto treinandos, eles receberiam também todos os benefícios dos demais funcionários como assistência médica, odontológica, vale-refeição, vale-transporte, entre outros.
Esse foi o modelo seguido pelo IOS. “A partir do primeiro dia de treinamento, a pessoa já está registrada na empresa. Ela já tem salário e demais benefícios”, explica Kelly. Se de um lado o programa incentiva a entrada dessa parcela da população no mercado de trabalho, do outro ela acaba sendo um gatilho para o comodismo. Há uma pequena parcela de deficientes que são atraídos para os cursos pela garantia da remuneração. “Semestralmente, temos vagas para os cursos gratuitos de inclusão de mercado, mas as vagas dos cursos não são preenchidas. Os deficientes acabam não optando pelo curso porque eles querem ter uma bolsa-auxílio”, afirma.
A situação paradoxal acontece porque vivemos num momento de pleno emprego para o deficiente que quer dar o primeiro passo no mercado de trabalho. Isso porque, nesses vinte anos após a Lei de Cotas, as empresas estão um pouco mais acostumadas com o tema e também porque, agora, o Ministério do Trabalho e do Emprego iniciou a fiscalização do cumprimento da legislação. “Pelos relatos das empresas, o intuito do Ministério, nesse primeiro momento, é a cota. Eles estão protelando a multa, desde que a empresa se mostre favorável com a inserção dos deficientes no quadro funcional”, conta Kelly. Nesse contexto, há um terreno fértil para os deficientes que querem ultrapassar limites, buscando novos desafios ao se desenvolver profissionalmente. Esse é o caso do paraplégico Rodrigo Graziano Lopes. “Quando meu pai me contou sobre o curso do IOS em técnico em informática [para capacitação de deficientes físicos] logo pensei que essa seria a chance que eu tinha para começar a trabalhar”, diz.
Ele não titubeou e agarrou a oportunidade. Após completar o curso, trabalhou no próprio Instituto como assessor e, dois anos mais tarde, passaria a integrar o quadro funcional da Totvs. Lopes trabalha atualmente no atendimento ao cliente. “O trabalho não é tão técnico assim, mas já é um bom passo para almejar uma área mais técnica”, relata. E comodismo é uma palavra que passa longe do dicionário dele. Lopes está se preparando para ir mais longe. O sonho do jovem de 24 anos é ser programador da Totvs e a empresa está investindo para que isso se torne realidade. A companhia paga integralmente o curso de ciência da computação para o futuro programador. “A empresa tem investido nele porque percebe que ele é uma pessoa que quer evoluir profissionalmente”, diz Adriana Souza Araújo, assistente líder de help-desk e gestora de Lopes.
Convivência entre líderes e liderados
Hoje, a gestora fala com naturalidade sobre o desempenho de Lopes na equipe, mas antes de passar a integrá-la, Adriana imaginou que teria de tratá-lo de forma diferente, quase maternal. “Eu fiquei um pouco preocupada porque nunca tinha tido uma experiência profissional direta com uma pessoa especial assim”, diz. A líder conta que inúmeras perguntas tomavam conta de sua mente: “Ficava pensando: como vai ser? Como devemos explicar? Como devemos dar orientação e acompanhá-lo profissionalmente?” Pensando nessa fase de desentrosamento inicial entre gestores, times e os novos contratados é que se recomenda uma campanha de integração.
“O que encontramos no mercado são equipes e líderes despreparados para lidar com os deficientes”, afirma Carolina Ignarra, da Talent Incluir, empresa especializada em ações de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Em palestra no IOS, ela conta que é natural encontrar dificuldades num primeiro momento, para tanto as empresas precisam investir em ações que integrem os colaboradores da empresa com o universo dos deficientes.
Carolina também é dona de uma biografia peculiar. Ela trabalhava como instrutora de ginástica laboral quando um acidente de moto mudou o rumo de sua vida. Num primeiro momento, ela imaginou que nunca mais poderia trabalhar com educação física novamente. Alguns meses após o ocorrido, sua ex-chefe a convidou para voltar à atividade, montando aulas de ginástica laboral para os demais profissionais da companhia. Ela aceitou e quando se deu conta já estava até ministrando as aulas. “Quando os colaboradores percebiam que uma cadeirante era a professora, eles se sentiam coibidos a se manter em seus postos de trabalho e acabavam fazendo os exercícios”, relata aos risos.
Alguns pontos foram fundamentais para esse bom entrosamento: assumir o despreparo para lidar com a pessoa deficiente, questionar com naturalidade, buscar soluções com o deficiente e não para o deficiente e acreditar que tudo é possível. Esse é o caminho das pedras que ela ensina aos executivos e colaboradores das empresas que contratam a Talent Incluir para fazer o trabalho de unir todas as pontas: equipes, deficientes e estrutura da empresa. “Se a gente quer mudar alguma coisa, não é forçando a inclusão das pessoas com deficiência na empresa, mas sim mudando a cultura organizacional”, explica Ribas, da Serasa Experian.
Quando esses princípios são respeitados ocorre um entrosamento natural entre líder, liderados (deficientes) e os demais membros da equipe. Foi assim no caso da dupla da Totvs. “Num primeiro momento, tivemos um acompanhamento e orientação da psicóloga do IOS. Ela explicou direitinho como funcionava e eu fui ficando mais tranquila [em gerenciar os trabalhos de Lopes]”, conta Adriana. Aos poucos, a insegurança foi dando lugar ao coleguismo. Não há como não notar o carinho com que a gestora age e fala com Lopes. Em todos os momentos em que, durante a entrevista, foi solicitado certo deslocamento dos entrevistados, a gestora corria à frente para se certificar de que portas e caminhos estavam livres para a passagem segura de Lopes pela empresa.
Empecilhos como os enfrentados por Lopes, Carolina, Ribas e Fidalgo são sanados quando há boa vontade de todas as partes. “A empresa precisa saber qual é o investimento, em tecnologia e acessibilidade, que essas pessoas demandam. Sem esses equipamentos como você pode oportunizar de fato o desempenho? Como você pode exigir que elas sejam produtivas? Não, a empresa precisa fazer a sua parte. Seria muito mais fácil incluir pessoas com deficiência leves, mas esse não é o caso da Serasa Experian”, afirma Andréa. A gerente de cidadania corporativa acrescenta que há toda uma real preocupação da inclusão e não de apenas uma integração inicial. “O deficiente tem de ter o sentimento de pertencimento, de ser membro de uma equipe. Ele tem de se sentir útil, seu trabalho precisa ser produtivo.” Ou seja, as pessoas deficientes enfrentam os mesmos desafios profissionais que qualquer um. Estão sempre à procura de novos estimulos, da independência e autonomia no trabalho, da manutenção da autoestima elevada e, naturalmente, do alcance de resultados.
Lei de Cotas
A Lei 8.213 de 1991, que prevê a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, completou em julho 22 anos. A legislação determina a contratação de 2% de deficientes para as empresas que possuem entre 100 a 200 empregados, 3% para aquelas entre 201 e 500, 4% para as entre 501 a 1 mil e 5% para os empreendimentos com mais de mil funcionários.
“Nesse sentido, a Lei tem um lado perverso. É que ao fazer parte de uma espécie de regra, de lei de cotas, a gente pode ser visto como aqueles que são protegidos pela lei”, explica João Ribas, da Serasa Experian. Ele conta que, com isso, há muita empresa que, para não pagar a multa, acaba deixando o deficiente trabalhando em funções subalternas para o resto da vida, sem promovê-lo e sem desenvolvê-lo. Para ele, além de conscientizar o mundo corporativo sobre a questão, devem ser trabalhadas as próprias famílias dos deficientes que, por vezes, ainda não acreditam o no potencial deles, assim como as próprias pessoas com deficiência. “Acredito que inclusão é um caminho de duas mãos. Eu não acredito que caiba apenas à empresa responsabilidade pela inclusão, como também não cabe apenas à lei a responsabilidade; mas cabe muito a nós [deficientes]. A empresa abre as portas, mas eu tenho de saber como me comportar, que tipo de entregas eu ofereço, que cumprimento de metas eu tenho”, completa.
Desenvolvimento
No Brasil, existem 45 milhões de deficientes, dos quais apenas 81,7% são alfabetizados, sendo que 61,1% possuem ensino fundamental completo, 6,7% superior completo e 0.9% frequentam cursos de pós-graduação ou mestrado. Fonte: IBGE
Instituto
O Instituto da Oportunidade Social é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Lei 9.790/99) que busca, apoia e monitora a empregabilidade de jovens e pessoas com deficiência com menor acesso às oportunidades do mercado de trabalho. Fundado em 1998, já capacitou mais de 20 mil jovens e 200 pessoas com deficiência, contando com a parceria de empresas e instituições, como Totvs, Certisign, IBM, Grupo Fleury e INSS. “O que a gente coloca como nosso diferencial é o comprometimento em tratar com o deficiente físico. Você não pode exigir da pessoa algo que ela não vai conseguir te fornecer de acordo com a deficiência dela”, diz Kelly Lopes, coordenadora do Instituto.
Incluir
Na sede da Serasa Experian trabalham 28 deficientes auditivos, 44 deficientes físicos, 19 deficientes visuais e uma deficiente mental, com síndrome de Down, que atua na catalogação de imagens da companhia.
Rede pela inclusão
Não basta formar e incluir; é preciso sensibilizar a sociedade sobre o assunto. Com esse mote, nasceram os primeiros fóruns de sensibilização da sociedade e também de empregabilidade de deficientes capitaneados pela Serasa Experian. Em maio de 2012, num fórum que contou com a participação da head da OIT, Debra Perry, criaram-se as bases de uma rede de empresas pela inclusão de pessoas com deficiência. Desde então, eles têm se reunido semanalmente para debater o tema. “A rede que lá atrás nasceu com apenas nove empresas hoje já conta com 50 organizações participantes, entre elas IBM, Natura, Ernst & Young e Magazine Luiza”, conta Andréa Regina, da Serasa Experian.. “O que a gente luta nessa rede é que, de fato, as coisas aconteçam e que não fiquem só no plano das ideias”, explica Ribas., da Serasa Experian Segundo ele, para trazer os planos para a prática, o ideal seria a criação de um indicador que analisasse se as empresas que estão na rede estão fazendo crescer o número de deficientes no seu quadro funcional.