Após mais de cem dias desde o começo do isolamento social no Brasil por conta da pandemia da covid-19, tenho observado ativamente as mudanças que já começam a ocorrer nas empresas. O home office se tornou a melhor alternativa para transpor esse momento, mas com ele surgiu uma apreensão: poderia o prolongamento dessa realidade levar os colaboradores a se distanciarem da cultura organizacional da empresa, colocando em risco a sensação de pertencimento que nos esforçamos para construir?
A cultura organizacional de uma companhia é o conjunto de valores, objetivos, símbolos, hábitos, comportamentos, políticas e crenças. É o que dá vida e confere sua individualidade diante das demais empresas, é a identidade e os propósitos que constituem a sua razão de ser, a finalidade para a qual foi idealizada.
Essa construção não acontece da noite para o dia e precisa ser ensinada, exercitada e reavaliada sempre. Garantir que isso aconteça é uma das funções da área de recursos humanos.
O papel do RH
É o RH que deve incentivar as relações humanizadas no contexto profissional, oferecer suporte, treinar a empatia e a capacidade de compreensão com os colegas e com as demais pessoas com quem convivemos em nosso trabalho. Na prática, precisamos, como empresa, reconhecer os esforços e valorizar as pessoas individualmente e como parte dos times, trabalhando a motivação das equipes a partir de ações criativas que valorizem uma comunicação clara com o colaborador e, principalmente, que consigam demonstrar cuidado e respeito à saúde e ao bem-estar de cada profissional, seja presencialmente ou durante o home office.
O novo normal, como já nos habituamos a chamar a vida que deverá se estabelecer pós-pandemia, demandará mais espaço para o trabalho remoto e para outros desafios. A maneira como vamos encarar essas mudanças juntos fará toda a diferença, mas é certo que a cultura organizacional será posta à prova e aquelas empresas que já se empenhavam anteriormente para fortalecê-la estão saindo na frente.
Na Europ Assistance Brasil, por exemplo, o estabelecimento de um senso de coletividade e desenvolvimento da cultura faz parte do nosso cotidiano muito antes de sequer pensarmos em distanciamento físico. Uma pesquisa que realizamos com 918 colaboradores da companhia a respeito de como eles têm se sentido durante o período de home office e de suas expectativas para o futuro prova isso. Comparando com outras pesquisas divulgadas, em diferentes mercados, os resultados obtidos pela filial brasileira da Europ Assistance têm sido um destaque positivo até mesmo para nós do RH, que trabalhamos para atingi-lo, e estão servindo também para ajustarmos as demandas que surgem agora.
Conhecendo a nossa população
Como tendência geral, seja em nossa companhia ou no mercado como um todo, as pessoas querem ter mais flexibilidade e poder trabalhar remotamente mais vezes. Uma pesquisa realizada pelo LinkedIn, com 2 mil pessoas, em maio deste ano, mostrou que 86% dos profissionais gostariam de continuar no home office após a pandemia, e isso é comprovado quando fazemos a análise dentro da empresa. Em nosso levantamento, 71,8% dos participantes responderam que têm vontade de continuar trabalhando de casa depois da crise, pelo menos, de uma a três vezes por semana; já para 21,2% o ideal seria trabalhar remotamente de dois a três dias por mês. Ou seja, 93% da nossa equipe querem que essa novidade seja incorporada definitivamente à rotina e nós não podemos, nem queremos, ignorar isso.
Depois de meses em distanciamento, percebemos que as tendências são positivas para quem estiver disposto a abraçá-las. A pandemia tem sido uma fase de muitas dificuldades, mas o futuro do home office não precisará ser assim. Fizemos a pesquisa, justamente, para entender como o trabalho remoto está funcionando sob a pressão de uma crise de saúde mundial; isso nos proporcionou o estudo de um cenário extremo e delicado, provando que se nessas condições o trabalho remoto é viável, ele também poderá ser quando a crise passar e a situação for mais favorável.
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As mudanças na cultura depois da pandemia
Até aqui, o resultado mais importante que tivemos está além da produtividade, das entregas, e é isso que gosto de dividir com o mercado. Ainda no levantamento realizado pelo Linkedin, 74% dos entrevistados estariam preocupados com a manutenção de seus empregos; na EABR, 83% dos nossos colaboradores afirmaram que confiam na companhia para se preparar para o futuro.
Sobre o cotidiano do trabalho, uma pesquisa de mercado feita por uma agência de recrutamento em São Paulo, divulgada por grandes portais de notícias, mostra que apenas 9% dos entrevistados afirmam terem se aproximado do seu chefe imediato, enquanto na EABR 75,9%, dizem que, apesar da distância física, se sentem apoiados por seus gestores e 75,6% afirmam que a empresa se adaptou bem para lidar com a situação atual. Entender como isso acontece dentro de cada empresa é o retorno mais importante para continuar trilhando o caminho certo e mantendo o senso de comunidade presente.
O que temos encontrado em nossos estudos e pesquisas são funcionários que afirmam estar conseguindo separar o tempo de trabalho e o de lazer (58,6%); que têm um ambiente adequado para o trabalho (58,2%) e que desempenham suas funções mantendo sua carga usual de demandas (73,5%). Esses resultados nos alegram, porque dizem muito da relação que criamos até aqui e que queremos cultivar nesse novo momento. Temos orgulho de ter estabelecido um campo fértil em que novas realidades podem florescer.
Mas, como vimos, nem todas as nossas respostas refletem a realidade do mercado brasileiro. Muitas companhias, dos mais variados setores, querem também estabelecer mais flexibilidade, mas temem que deixar os funcionários em casa traga prejuízos e queda de produtividade; por outro lado, os colaboradores que querem trabalhar remotamente têm ainda algumas inseguranças em relação à estrutura que a empresa irá oferecer para que esse trabalho seja realizado e como eles irão conciliar trabalho e vida pessoal.
Todas essas respostas estão na base da cultura organizacional da empresa, de como empregadores e funcionários se relacionaram até aqui, da confiança mútua que desenvolveram, ou não. É a hora de olhar profundamente para os valores que a companhia promove e ver se eles estão alinhados com a nova realidade que se impõe a todos nós. Esse momento tem potencial para ser um divisor de águas de muitas empresas e a sua cultura definirá como será o futuro, que ainda dá tempo de construir.
Liderança em destaque
Quando aceitamos essa realidade que se apresenta, o desafio está posto: a partir desse cenário, como fortalecer o vínculo emocional, o senso de pertencimento e a identidade dos colaboradores com a organização? Acredito que são as lideranças das empresas que devem encabeçar a promoção e a preservação dos princípios dessa cultura. Para fazer isso, além de apresentar habilidades com ferramentas tecnológicas, elas precisam desenvolver outras características, como a capacidade de adaptação, a habilidade de se comunicar, de ouvir, a criatividade, capacidade de inspirar, delegar e tantas outras que as auxiliem a atingir esse objetivo.
O micro management ficou para trás, aqueles líderes que ainda utilizavam o estilo de “comando e controle” forçosamente perderam espaço, pois essa é também a era da confiança em nossos colaboradores.
Mais do que nunca, a relação líder-liderado tem de ser baseada no empoderamento das pessoas e com ênfase nos resultados e entregas. O contato está acima do controle.
Em vez de querer saber exatamente o que cada membro da equipe está fazendo o tempo todo, a liderança deverá dar espaço e estar disponível para o diálogo por meio de novas formas de conexão.
A comunicação é fundamental para que o trabalho funcione bem, permitindo que os colaboradores saibam o que se passa na empresa, quais são os desafios e o que é esperado deles, especialmente para lembrá-los que a sua tarefa tem um vínculo com um propósito maior da organização, pois cada um constrói um pedacinho do resultado do todo.
Saúde mental e bem-estar
A satisfação, no entanto, só será possível a partir do momento em que os colaboradores sentirem que têm suas particularidades de vida respeitadas. Se, quando falamos de cultura organizacional, estamos falando de pertencimento e acolhimento, a área de recursos humanos também precisa pensar no suporte emocional a ser dado a essas pessoas. Todo o mundo está lidando com os inúmeros desafios impostos nesse momento, não somente relacionados à carreira, mas também às relações familiares, diversos afazeres, mudança da rotina, isolamento, limitações das interações sociais e tantas outras.
Por meio de encontros virtuais, é possível propiciar momentos de celebrações de conquistas e confraternizações. Há outras formas de se fazer presente e mostrar apreço e cuidado com as pessoas, apesar do distanciamento físico, mas nenhuma delas é uma fórmula mágica. Para que a cultura organizacional se mantenha forte, nós do gerenciamento de pessoas, precisamos fortalecê-la, reforçar nossos valores diariamente, estar presentes sem sufocar e ter como foco a nossa missão.
Aprender é a chave
Em qualquer empresa, entender como os funcionários verdadeiramente se sentem é o que o RH precisa fazer, sem medo das respostas. Assim, será capaz de guiar no novo caminho, combinando as reações de seus colaboradores com o que é visto na prática, a fim de demonstrar em qual grau de maturidade está a relação, determinando quais medidas podem ou não ser implementadas.
Precisamos estar abertos a continuar aprendendo sobre essa nova forma de nos conectar, fazer gestão, gerar resultados; certamente, temos muito o que evoluir no caminho. O momento é atípico, não ficaremos fisicamente isolados uns dos outros para sempre, em um futuro breve poderemos novamente nos reunir, confraternizar, discutir propostas ao vivo. Teremos essa opção quando ela for requerida e necessária, mas ela deixará de ser uma regra imposta para se tornar uma escolha. A nossa habilidade de ouvir e conversar com as pessoas, a humanização, a solidariedade e a capacidade de estarmos abertos a reaprender são fatores que nos fortalecerão, como uma comunidade, para os desafios futuros.