Gestão

Burocracia interna, um mal desnecessário

de Leandro Quintanilha em 7 de agosto de 2014
Luiz Iaquinta / Crédito: Adriano Vizoni
Luiz Iaquinta, da Brookfield Incorporações: ideias simples proporcionam ganhos significativos / Crédito: Adriano Vizoni

Hoje, a palavra burocracia pode parecer obsoleta em si, ao menos em sua acepção original. Porque remete ao excesso de papelada, em uma época em que se exalta a digitalização de documentos e o armazenamento de arquivos em nuvem. Contudo, é preciso entender burocracia também como o excesso de procedimentos, ressalvas, autorizações, etapas, especificações e tantos outros obstáculos para que as coisas de fato aconteçam, tanto em organizações públicas quanto privadas. Há burocracia de processos, claro, mas essa morosidade pode ser também comportamental.

“O conceito de burocracia vem da necessidade de controle, o que é muito importante para uma organização”, afirma Rogério Londero Boeira, especialista em desenvolvimento de pessoas e fundador da escola de aprendizagem corporativa Cultman. “Quanto maior for a instituição, maior será a necessidade de controle.” Para ele, o problema não é o rigor em si, mas processos de trabalho mal elaborados para executá-lo. O consultor organizacional Eduardo Carmello, diretor da Entheusiasmos – Consultoria em Talentos Humanos, também defende a burocracia do bem. “É uma forma de se evitar perdas”, diz. “O problema é quando isso ocorre de forma aleatória, ou seja, não estratégica.” Assim, os processos se atrasam e tudo fica cotidianamente urgente. Quando tudo vira prioridade, nada pode ser priorizado. “Não se consegue pensar em excelência num contexto de se apagar incêndios o tempo todo”, adverte Carmello.

RH burocrático
Por questões legais, os departamentos de Recursos Humanos são mais suscetíveis à burocratização que os demais, conforme explica o administrador e engenheiro de produção José Alcí Alves, consultor da ProMover, empresa especializada em psicologia do trabalho. Isso porque os diversos registros de trabalho, como contribuições previdenciárias e afins, precisam ser guardados por no mínimo 20 anos, para o esclarecimento de eventuais queixas trabalhistas. Imagine o volume de informações do tipo em organizações longevas com milhares de funcionários.

+ Universo dos entrevistados
Foram consultados 2.388 industriais em todo o Brasil. Desse grupo, foram ouvidos 1.835 empresários da indústria de transformação, 116 da indústria extrativa e 437 da construção. 

De todo modo, a burocracia em seu sentido mais amplo pode ocorrer em qualquer setor da empresa, no RH, no financeiro, no jurídico, no marketing, no operacional, no atendimento… Cada uma dessas áreas tem processos específicos e cada processo ocorre em três etapas básicas, como explica Boeira: entrada, processamento e saída. Em um cenário catastrófico, a burocracia pode ocorrer nas três etapas mencionadas em diversos setores da organização. Porque processos podem emperrar isoladamente ou em cadeia.

“Um processo bem definido é elaborado com base em critérios técnicos”, enfatiza Boeira. O problema é que fatores emocionais podem influenciar em decisões que tornam mais morosas as rotinas de trabalho. Afirmação arbitrária de autoridade, repetição irrefletida do que já é feito há tempos, necessidade de aceitação entre colegas, procrastinação ou omissão diante de tarefas mais chatas e trabalhosas são alguns dos fatores desencadeantes do que se chama de burocracia comportamental.

Mudança de cultura
E transformações de comportamento requerem mudanças de cultura. Mas mudanças, geram desconfiança e resistência em alguns ambientes corporativos. “Sempre que se implanta um sistema novo, as pessoas tendem a reclamar muito”, reconhece Boeira. O fato é que, muitas vezes, quem elabora os processos não são as mesmas pessoas que os realizam no dia a dia. Essas mudanças precisam, portanto, ocorrer de forma integrada. O antídoto seria envolver essas pessoas na melhoria dos sistemas ouvindo-as e considerando de fato as colocações delas — elas conhecem de perto os obstáculos e gargalos em questão e tendem a se engajar em mudanças nas quais enxergam sentido. 

Na Brookfield Incorporações, a estratégia foi evitar que as transformações ocorressem de forma radical e repentina. Criado em 2010 para tornar a empresa mais rápida e eficiente, o Departamento de Processos implementou a plataforma tecnológica BPM (Business Project Management) para otimizar liberações de orçamento, demissões e contratações de pessoal. Com ela, os formulários e contratos que circulavam de mão em mão entre diferentes pessoas e setores (por vezes, em diferentes estados brasileiros) passaram a se concentrar digitalmente no mesmo sistema. “Mas os formulários são basicamente os mesmos, porque a familiaridade favorece a aceitação”, ressalta Luiz Iaquinta, diretor da Gerência de Risco e Compliance da companhia. Assim, os funcionários se sentem menos intimidados. Apenas pessoas-chave precisam ser treinadas, para que se encarregam de repassar os novos procedimentos às suas equipes. 

Autorizações que antes demoravam três semanas agora ocorrem em uma. Também não é mais necessário o envio de papéis pelos Correios, o que reduz custos, evita extravios e facilita o trabalho dos gestores na priorização de processos importantes. O efeito é sentido em larga escala, já que a incorporadora chega a tocar mais de cem obras ao mesmo tempo em diferentes regiões do país. Outra mudança de impacto ocorreu com uma medida trivial. Foram instalados aparelhos de digitalização de documentos (scanners) em todas as unidades e obras da companhia. Assim, as notas ficais também não precisam mais viajar pelo Correio, aumentando a segurança e a rapidez dos pagamentos. “Às vezes, ideias simples proporcionam ganhos significativos”, afirma Iaquinta.

O Departamento de Processos da Brookfield funciona com apenas quatro pessoas: três administradores oriundos de consultorias e um engenheiro civil, deslocado do Departamento Financeiro da incorporadora justamente por sua facilidade de comunicação com diferentes setores.

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Eduardo Carmello / Crédito: Divulgação
Eduardo Carmello, da Entheusiasmos: compliance é o lado bom da burocracia / Crédito: Divulgação

Revendo processos
No SPC Brasil (Sistema de Proteção ao Crédito), o Escritório de Processos é ainda mais novo – foi criado há menos de dois anos, em 2012, para mapear, redesenhar e implementar processos para combater a burocracia interna na organização. Com a parceria da nova equipe de Processos, o Financeiro passou a realizar seus ciclos de faturamento com mais segurança e rapidez. Agora, são necessários apenas três ou quatro dias para se realizar o que antes tomava oito ou dez, de acordo com o gerente de Planejamento e Financeiro da instituição, Flávio Borges.

Essas mudanças ocorreram em um momento em que a organização ficava maior e mais complexa. “Nosso número de funcionários triplicou nos últimos dois anos e soma cerca de 400 pessoas hoje”, ilustra Borges. Ao mesmo tempo, o serviço de certificação digital, que antes atendia dois parceiros, teve um crescimento exponencial de demanda, chegando a mais de 200 clientes. “Rever seus sistemas de controle é um hábito essencial em organizações em crescimento”, diz.

O Escritório de Processos do SPC também é formado por uma equipe relativamente pequena: cinco pessoas, sendo um coordenador, três analistas e dois estagiários, que combinam três formações – administração, engenharia de produção e análise de sistemas.

Borges destaca que as intervenções em processos requerem muita sensibilidade. “É preciso cuidado para que o gestor da área em questão não se sinta invadido.” Quando essa aproximação é bemfeita, pode-se vislumbrar ganhos de eficiência e controle que são de grande interesse do gestor no exercício de seu comando e no cumprimento de suas metas. Ao se dar conta disso, o profissional tende não só a aceitar necessidade de mudança, mas também a colaborar com informações e ideias.

O desafio do compliance
Com a sanção da Lei Anticorrupção (12.846/13), em agosto de 2013, a ênfase no controle de processos dentro das empresas privadas só tende a crescer. A atual legislação prevê punição a empresas envolvidas em atos de corrupção, por meio de processos civis e administrativos (antes, as empresas podiam alegar que o crime teria sido realizado isoladamente por um funcionário). Agora, estão previstas multas de até 20% do faturamento anual bruto da empresa. Quando não for possível determinar o montante, o juiz pode estabelecer valores de R$ 6 mil a R$ 60 milhões. Tudo isso, além da reparação do dano causado, a publicação da condenação em grandes veículos de comunicação, a proibição de acesso a recursos públicos (financiamentos, subsídios, licitações etc.), a suspensão parcial de atividades ou, dependendo do caso, até o fechamento da organização.

Se, por um lado, a ênfase no compliance (rigor no cumprimento à lei) pode representar um desafio para o combate à burocracia interna nas empresas, a nova legislação pode significar também uma maior responsabilidade das empresas pelo controle de seus processos – o que, quando bemfeito, reduz a burocracia interna aleatória.

Na opinião unânime dos especialistas e executivos entrevistados pela MELHOR para esta reportagem, o compliance acaba sendo mais uma oportunidade que um problema. “A nova legislação vem para dar um norte ao controle de processos”, afirma Carmello, da Entheusiasmos. “É o momento de se aprender a fazer o certo de forma correta.” Para ele o compliance representa o lado bom da burocracia.

Cultura brasileira
Carmello avalia que o cumprimento das regras ainda não foi completamente assimilado pela cultura empresarial brasileira. “Não temos em essência esse amadurecimento – somos um país acostumado à ansiedade de gerar caixa a curto prazo.” E controle interno é um investimento na tranquilidade a longo prazo.

O compliance favorece o combate à má burocracia, o que por sua vez favorece a inovação. Na Brookfield Incorporações, os departamentos de Processos e de Compliance andam de mãos dadas, nas palavras do diretor Iaquinta. É que as duas áreas são subdivisões de um mesmo setor da organização, a Gestão de Risco e Compliance, que ele mesmo comanda. Se o diálogo entre os diferentes departamentos de uma empresa é importante de uma forma geral, deve ser ainda mais acentuado entre Processos e Controle. Trata-se aqui de uma codependência positiva.

É ideal que a mudança na legislação traga consigo uma transformação cultural. Porque a burocracia empresarial não é só questão de papelada. É um modo de trabalho. Mesmo reuniões longas são consideradas uma forma de burocracia contemporânea, o que algumas organizações já combatem. Seja com a figura de um mediador de reunião ou com táticas menos ortodoxas, como duração máxima de meia hora e mesmo “reuniões em pé”, em que a posição de prontidão favoreceria a velocidade das decisões. Exageros à parte, o importante é saber seguir em frente.

 

Custo Brasil
Na avaliação da Confederação Nacional da Indústria (CNI) o excesso de burocracia prejudica a competitividade de 92% das indústrias brasileiras. A opinião da entidade foi formada a partir de duas pesquisas idealizadas pelo CNI, uma envolvendo a indústria da construção e outra relativa à indústria de transformação e extrativa. No saldo geral desses setores, a confederação aponta que além de afetar a competitividade de 92% da indústria, parcela de 85% dos industriais ouvidos considera que há um número excessivo de obrigações legais. O estudo revela também que fatia de 58% dos industriais avalia que um dos principais impactos da burocracia sobre as empresas é o aumento do custo de gerenciamento de trabalhadores. Do total consultado, fatia de 73% aponta que a legislação trabalhista deveria ser prioridade do governo no combate à burocracia excessiva (a legislação ambiental ficou em segundo lugar, com 55% das respostas).

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