Storytelling hoje corre o risco de pegar o trem rumo à banalização e ainda se sentar ao lado do coaching, que viaja na janela. O que esses companheiros de viagem teriam em comum para se encontrarem próximos e em direção a um mesmo e lamentável destino?
Ambas as práticas são descritas muitas vezes por conceitos sem um rigor técnico, o que favorece a percepção de que foram plenamente compreendidas. Podem ser adotadas em qualquer nível hierárquico e se referem analogamente também a experiências externas ao ambiente organizacional, o que lhes confere amplitude em sua aplicação.
Não se impondo pelo embasamento teórico, mas pela intenção (aliás, sempre boa), essas práticas não são nocivas e não possuem contraindicação, ao contrário de “reengenharia”, por exemplo. Pode parecer pouco, mas não se deve subestimar essa característica. Lembremos que o juramento dos formandos de medicina (pelo menos o de Hipócrates, no original em latim) apresenta a seguinte recomendação sobre a conduta médica: em primeiro lugar, não ser nociva, não causar mal. E, como se sabe, medicina é uma ciência. Até o momento, pelo menos.
A difusão de storytelling deu margem a que palestrantes sem bagagem conceitual nem vivência empresarial de peso – que substituíram a discussão relevante de temas organizacionais por um show do intervalo sem os gols da rodada – encontrem nessa prática uma oportunidade de retomar o fôlego para nadar de braçada nos mares do negócio de palestras “motivacionais”.
Essa utilização indevida ocorre da seguinte maneira: o palestrante fala da força emocional que está em “contar histórias”. Querem provar quão poderosa é uma mensagem passada com emoção, o quanto se consegue alcançar com sua utilização. Então, contam uma história de um objetivo que precisava ser alcançado, mas que isso só foi possível depois de “trocar as informações frias por uma história bem contada”. Essa história, costumeiramente apelativa, leva os seguintes ingredientes: uma medida a ser aprovada, uma criança (Joãozinho, Mariazinha ou Pedrinho), um caso de doença ou morte, uma falsa engasgada do palestrante (achei que fosse um chiclete) para se mostrar tocado com a situação, e então o final desejado: uma aprovação obtida devido à força emocional da história. No fechamento, a cereja no chantili: “Viu como storytelling é poderosa?”. Realmente, é de chorar.
Storytelling, como deve ser
Embora muitas vezes venha sendo apresentada com tal pieguice e sem profundidade, a técnica de storytelling tem valor porque permite que uma narrativa seja entendida como mecanismo de compreensão de si mesmo e dos outros, que articula ideias sobre identidade, sobre relações sociais e sobre os espaços onde estas ocorrem. E nesses espaços as práticas discursivas implicam, sim, jogos de poder.
Histórias são a maneira pela qual nós damos sentido aos nossos mundos. Elas têm nos trazido juntos por milhares de anos, têm nos ajudado a construir um significado a partir do passado e aberto o caminho para novos significados, questões e discussões.
Quando há situações extremas como crises financeiras ou acidentes de trabalho, as histórias proveem uma forma pela qual se pode expressar e ouvir o que é compartilhado. Apoiam nosso processo individual e coletivo de dar significado às coisas (processo de significação).
Em storytelling se destacam, além do que está sendo explicitado, os silêncios e as histórias não ditas, não contadas. Para quem é a história que está sendo contada? Quem está contando? Qual é o contexto da storytelling?
A efetividade de storytelling está atrelada não somente a uma capacidade de ver (sinais, gestos), mas também de ouvir. Curiosamente, a competência “saber ouvir” não vem sendo abordada junto às questões dessa prática. E, como se percebe, “saber ouvir” constaria seguramente de um top 10 do jargão organizacional (onde estaria “visão holística”, por exemplo).
O escritor (de romances, poesias e peças de teatro) e crítico de arte John Berger disse em uma entrevista este ano: Unlike what most people think, storytelling does not begin with inventing, it begins with listening.
Estudos feitos com nativos de grupos étnicos do Pacífico mostram, com rigor sociológico, o quanto “saber ouvir” é fundamental e integrante de storytelling, o que representa e o que promove. Essa atitude, nesses estudos, é chamada de Deep Listening, algo como “escuta profunda”. Manterei aqui essa expressão sem traduzi-la, por risco de imprecisão, já que, em português, escutar e ouvir não têm o mesmo rigor de utilização que “hear” e “listen” têm em inglês.
Sobre Deep Listening
Deep Listening descreve uma forma de aprender, trabalhar e estar próximo. É formado pelos conceitos de comunidade e reciprocidade. Significa ouvir com senso de responsabilidade as histórias que são contadas e observar a si próprio.
Deep Listening envolve ouvir respeitosamente, formular cada sentido em cada ser. Leva tempo, requer paciência. Pode ser usada como uma metodologia de pesquisa e como uma maneira de estar juntos em comunidades e organizações.
Deep Listening baseia-se em histórias, silêncios e o espaço que reside entre estes.
Essa prática é um convite para caminhos culturalmente congruentes de aprendizagem e conhecimento.
Deep Listening em organizações
A prática de Deep Listening nos ensina a aprender com o passado, estar totalmente presente no momento atual e ter abertura para o futuro que emerge. Tem implicações para a vida organizacional contemporânea ao fazer com que as pessoas:
a) reflitam criticamente sobre suas atitudes e atuação;
b) ouçam histórias que são contadas, estando atentas para o que não é falado, os assuntos não comentados; e
c) invistam na construção de relações, redes e comunidades dentro do espaço de trabalho.
Otto Scharmer, autor de U Theory e coautor de Leading from the emerging future: From ego-system to eco-system economies, descreve quatro tipos de escuta, a saber:
(1) Downloading: confirmar o que já se sabe.
(2) Objetivo ou Escuta Ativa: prestar atenção ao que difere de nossos próprios conceitos.
(3) Escuta Empática: perceber o mundo pelos olhos de alguém.
(4) Escuta Generativa: escutar a partir da perspectiva futura, o espaço emergente do futuro.
A Escuta Generativa, tal qual uma gramática generativa, apresenta regras e princípios na geração de sentenças de uma língua, atribuindo-lhes uma estrutura. É esse quarto tipo de escuta que se alinha com Deep Listening. Faz com que grupos de trabalho ou comunidades estejam totalmente presentes e que cada um identifique o que está acontecendo e emergindo no momento. Estabelece espaço para um contato genuíno, um lugar de possibilidades onde demandas presentes e emergentes podem ser expressas e exploradas.
Ao integrar dimensões de todos esses tipos, Deep Listening incorpora (1) a confirmação do que é conhecido, (2) a atenção ao que é diferente, (3) o olhar do outro e (4) uma escuta que vai além de nossos ouvidos.
Otto Scharmer defende processos de aprendizagem que nos sintonizam e nos puxam para futuras possibilidades, mais do que simplesmente reflitam e reajam a situações passadas. A prática de Deep Listening transcende, portanto, conceitos lineares de tempo e espaço.
Parte do processo de Deep Listening é um despertar para a forma pela qual uma história é estruturada. John Berger aponta que nós precisamos ouvir o que é dito, o que não é dito, o que está esperando para ser dito e o que está clamando para ser dito. Estar sintonizado dessa maneira desenvolve uma conscientização crítica de nossa relação com as histórias, sendo verbalizadas ou silenciadas. Articular essa conscientização requer um destemor tanto por parte de contadores quanto de ouvintes de histórias.
Relações de confiança
Deep Listening é um processo de fazer-se presente a si mesmo, aos outros, a cada um e ao ambiente. Quando estamos presentes, estamos disponíveis para sintonizar, para harmonizar outras pessoas e nosso contexto. Scharmer se refere a isso como presencing, um termo que junta presence e sensing. Estando mais presentes, somos capazes de nos tornar mais conscientes e disponíveis para outras pessoas.
A construção de equipes é predicado para o desenvolvimento de confiança mútua, um trabalho lento e que precisa atender à forma contínua em um determinado período. Investir tempo em relações é fundamental para a prática de Deep Listening.
Comunicar-se para entender requer ouvir profundamente e tal esforço nos leva a relações de confiança. O conceito de “respeito” é central a essa prática e, quando aplicado ao espaço de trabalho, refere-se a trabalhar com o que temos em comum e o que nos diferencia.
Dessa forma, cada processo de comunicação conduzirá a um novo conhecimento baseado em grupos de interesse, de equipes, o que é culturalmente harmonizado e qual atende às necessidades desses envolvidos.
A incorporação de Deep Listening em nossas vidas no trabalho é um convite para gerar conhecimento, construir e desenvolver equipes e fazer a diferença. Uma prática que demanda, antes de tudo, uma sintonia fina. E intensa.
Luis Adonis Correia é diretor associado de Opesla (www.opesla.com), autor de Riscos do capital humano: talentos, processos e crenças (editora Brasport). Atualmente, prepara seu novo livro e MELHOR apresenta em primeira mão um de seus ensaios