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A IA pode redesenhar nossas competências, colocando em xeque nossa identidade profissional

Na era da inteligência artificial, surge o desafio de preservar autoria, reconhecimento e identidade profissional em meio a mudanças culturais e tecnológicas

de Fabiano Rangel em 29 de setembro de 2025
IA e competências Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

A inteligência artificial já desafia o mundo do trabalho em múltiplas frentes: produtividade, decisões, cultura e ética. Mas há mais camadas e uma delas, ainda silenciosa, começa a impactar a nossa identidade profissional.

Depois de discutirmos, nos primeiros artigos da série, os impactos estruturais, éticos e culturais da IA, avançamos agora para um território menos visível, mas muito presente. Como a IA afeta a forma como nos percebemos no trabalho e como nos percebem, o que pode variar bastante conforme o tipo de atividade, a cultura organizacional e o momento de carreira de cada um.

O paradoxo da massa de bolo: performance sem autoria

Nos anos 1950, a Betty Crocker lançou uma mistura de bolo instantânea que fracassou nas vendas. O motivo? Faltava autoria. A receita estava tão pronta que retirava das pessoas a sensação de que elas haviam feito o bolo. A solução foi simples, incluir um ovo. A entrega final continuava prática, mas agora com um toque simbólico de autoria, a mão humana, literalmente sendo colocada na massa.

Esse caso, com relato em artigo da Harvard Business Review (“How AI Affects Our Sense of Self”), ajuda a entender o dilema atual diante da IA: como manter o sentimento de autoria quando a entrega é compartilhada com uma máquina?

O exemplo explora a perda de pertencimento em atividades criativas, mas a sensação também se manifesta em funções operacionais. Um analista, por exemplo, que usa IA para projeções financeiras de forma automática, pode começar a perder o domínio do raciocínio por trás dos números, as nuances, os contextos, as intuições humanas. Logo, o risco não está na ferramenta em si, mas em como ela interfere no vínculo humano e emocional com o trabalho.

O desconforto do reconhecimento invisível

Uma pesquisa recente da Harvard Business Review (“The Hidden Penalty of Using AI at Work”, 2025) revelou uma percepção dos profissionais que utilizam IA em alguns contextos como menos confiáveis ou menos merecedores de reconhecimento, isso mesmo com entregas de alta qualidade.

Essa percepção, claro, não é universal. Mas reflete padrões culturais que ainda associam competência ao esforço visível. O estudo mostra que essa distorção afeta especialmente mulheres e pessoas acima dos 40 anos, o que reforça a necessidade de discutirmos preconceitos “invisíveis” em transições tecnológicas.

Com receio de julgamentos, muitos profissionais ocultam o uso da IA. Surgem as chamadas “shadow Ais”: ferramentas que ajudam, mas que ninguém assume. Isso pode se tornar um obstáculo real à inovação, à aprendizagem e à transparência nas organizações.

Reconstruindo a identidade profissional na era da IA

Esse cenário aponta para algo maior do que a produtividade: a reconstrução do nosso senso de pertencimento no trabalho.

  • Profissionais experientes se questionam sobre o valor da sua expertise.
  • Mulheres e grupos historicamente sub-representados podem sentir que a IA reforça o estigma da síndrome do impostor.
  • Jovens enfrentam a pressão de dominar ferramentas que mudam mais rápido do que suas referências profissionais.

Embora o desconforto ético pareça mais acentuado em cargos criativos, ele também se manifesta nas funções operacionais. Parte dessa ansiedade vem do medo da substituição. Outra parte, da sensação de que o trabalho se tornou mecânico demais.

O papel das lideranças e do RH na travessia

RHs e lideranças têm um papel central nessa reconstrução simbólica. Não basta formar pessoas para usar IA. É preciso criar uma ambiência que legitime, reconheça e valorize o uso inteligente dessas ferramentas.

Alguns caminhos práticos:

  • Reconhecer a autoria humana em entregas mediadas por IA;
  • Evitar dicotomias simplistas (IA x humano) e promover a colaboração integrada;
  • Treinar gestores para diferenciar uso estratégico de dependência automatizada;
  • Dar visibilidade aos bastidores: quem treinou, revisou ou refinou os outputs da IA também entregou valor;
  • Valorizar as boas perguntas, o repertório existente e o julgamento humano, são tão importantes quanto as respostas que os algoritmos geram.

Algumas empresas de tecnologia e consultoria já adotam o hábito de atribuir créditos explícitos a times humanos por trás de entregas mediadas por IA, como “curadoria humana: fulano, cicrano, beltrano”. Esse tipo de prática ajuda a preservar o senso de autoria, combate a invisibilidade simbólica e sinaliza, na cultura organizacional, que a tecnologia é meio e não fim.

O otimismo que se constrói com responsabilidade

A IA tem, sim, o potencial de tornar o trabalho mais estratégico, criativo e humano. Mas esse resultado não virá automaticamente.

A transição pode gerar desconforto. Mas o desconforto, quando bem acolhido, é o que nos move a redesenhar o que valorizamos, o que reconhecemos e como recompensamos.

O ponto não é se a IA vai nos ajudar a entregar mais rápido. Isso ela já faz. A verdadeira questão é: como garantimos que, ao chegar mais longe, ainda nos reconheçamos no caminho percorrido?

Como o RH e a liderança devem mensurar valor profissional nessa nova era sem cair no reducionismo da produtividade e sem se perder em subjetividades paralisantes? Certamente ainda não temos essa resposta como algo definitivo e pronto. Contudo, a pergunta que fica e será nosso papel construir repertório para isso, é o fato de podermos ter o auxílio da IA, mas, pelo fato de ser algo novo, ela ainda não terá a resposta, precisar de muitos testes e inputs para chegarmos nisso.

Por fim, ninguém quer apenas entregar mais. As pessoas ainda querem sentir que colocaram a mão na massa e ter a clara sensação de o bolo também foi feito por elas.

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Fabiano Rangel

Profissional com larga experiência em consultoria e vida executiva contribuindo em organizações multinacionais e nacionais como: Fundação BankBoston; Banco ABN AMRO Real; CPFL Energia e Leão Alimentos e Bebidas (joint venture do Sistema Coca-Cola Brasil), em áreas de RH, D&I, ESG, Governança, Relações Institucionais e Governamentais, Ética & Compliance, Direitos Humanos, Gestão de mudanças e transformação organizacional; Jurídico; Ética & Compliance e Tecnologia e informação, incluindo os processos de transformação digital; Gestão de Riscos Corporativos, Q+EHS (Qualidade, Saúde e Segurança Ocupacional e Meio Ambiente). Formado em direito, pós-graduado em Meio Ambiente e Sociedade, Especialista em Gestão de Mudanças e Transformação Digital e com MBA em Marketing e Inovação.