Apesar dos esforços empreendidos na melhoria da gestão de pessoas no setor público, ainda há um longo caminho a ser percorrido para equiparar essas ações às melhores práticas do setor privado. Nessa batalha, alguns desafios permanecem, como a descontinuidade das políticas e dos compromissos em função da troca de cadeiras no cenário político.
Outros tomaram novas formas, como é o caso da promoção de cursos e ações voltados ao desenvolvimento de líderes. “Além de preparar novas gerações, precisamos preparar os gestores, aqueles que vão receber esses profissionais”, afirma o professor e pesquisador da Fundação Dom Cabral (FDC) Ricardo Carvalho. Segundo ele, se isso não ocorrer haverá um grande choque cultural entre as gerações que desmotivará os jovens profissionais a se manter nos cargos públicos.
Em entrevista exclusiva à MELHOR, o professor ainda faz uma análise da gestão das empresas públicas, ressalta o papel do RH e adianta que o cidadão brasileiro tem tomado a iniciativa de cobrar mais uma boa gestão no setor público. “Passou de um mero espectador para ser aquele que cobra os resultados”, sinaliza.
MELHOR – Quais são as diferenças no que se refere à gestão de pessoas na esfera pública e no setor privado?
Carvalho – Há algo muito importante e diferente do setor privado que é a missão pública, o dever público. Se em uma empresa privada o intuito é satisfazer as expectativas dos acionistas, na gestão pública o foco está no cidadão. Outro ponto [de distinção do público e privado] é o recrutamento dos profissionais. No setor público, a seleção acontece por meio do concurso público e não sofre as ingerências que existem no setor privado, já que o recrutamento de seleção é baseado em uma competência técnica. Há diferença, ainda, na própria formação. Atualmente, temos cursos voltados para quem pretende seguir carreira no setor público. Trata-se de uma grande evolução, pois um jovem recém-saído do ensino médio pode, se quiser, optar por uma formação voltada para a área de gestão pública. Ele entrará no Estado já com uma formação de qualidade.
E os pontos em comum?
O que se coloca hoje, tanto na gestão pública quanto no setor privado, é como lidar com os jovens – a chamada geração Y. Isso porque se trata de profissionais diferentes, com visão clara de carreira, inseridos em um novo contexto de trabalho, onde o capital humano é valorizado e a tecnologia norteia boa parte das ações – muitas vezes isso não “combina” com a cultura da gestão pública. Isso também acontece na empresa privada, mas ela é muito mais ágil nas ações de retenção. O setor público precisa investir mais nesse aspecto e estudar mais as necessidades desses jovens, para não perdê-los.
Esse seria, portanto, o maior desafio que o gestor de pessoas enfrenta nessa esfera?
Sim, mas há outro desafio, que é perene, e se refere às variáveis políticas da gestão pública, como a descontinuidade das políticas dos compromissos e de algumas ações em função da troca de dirigente. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas essa questão já tem melhorado. Todos os gestores públicos estão hoje vinculados a projetos internacionais de linha de financiamento de crédito e suas gestões passam por um controle de auditorias nacionais e internacionais. E mesmo havendo uma percentagem de desvio de rota, há cada vez mais transparência nas ações em função da consolidação do processo democrático, da liberdade de imprensa e da consciência do próprio cidadão brasileiro. Ele começou a assumir o papel de cidadão pleno, responsável pela gestão. Passou de um mero espectador da cena pública para ser aquele que cobra os resultados. É o avanço da cidadania, com vários agentes em campo atuando junto no processo de fiscalização consciente.
Então, a gestão pública já começa a não se deixar influenciar tanto com a mudança dos governantes?
Ainda há muita influência, mas a expectativa é que ao longo dos anos isso mude. Um presidente ou um ministro, por exemplo, tem de estar preocupado com as questões da comunidade, do coletivo e não com as questões privadas. Infelizmente, a política de uma maneira geral no mundo e no nosso país está muito desvalorizada: temos de voltar a discutir a política que fala dos interesses comuns do cidadão, do Estado. Senão o Estado vai desaparecer. Não tem sentido você colocar a empresa para governá-lo. Esse é um modelo esquizofrênico. Eu sou a favor da revalorização da dimensão política, com todas as letras e a Política com “p” maiúsculo.
Em se tratando de progressos no setor público, pela primeira vez o Brasil passou a ter mais de mil gestores públicos na ativa. Como o senhor analisa esse quadro?
Houve uma melhora significativa na formação de capital intelectual da gestão pública. Hoje, você pode dizer que a pessoa que trabalha nessa área, como eu, que dou aula em Brasília e Minas Gerais, encontra profissionais extremamente gabaritados, capacitados na dimensão técnica. No entanto, a dimensão do engajamento também é muito importante. Você tem status, tem reconhecimento, mas não tem as melhores práticas de remuneração. Trabalha-se com outra dimensão que é a da vocação, a vocação para a questão pública. Nesse sentido, entramos em outra discussão que é a diferença entre reconhecimento e recompensa.
O governo Dilma quer autorizar um novo concurso de gestor em 2013 com 150 vagas. Como será a capacitação desses profissionais? Qual o papel do RH nesse contexto?
O papel do RH na capacitação é fundamental. Ele não é mais apenas aquele que treina, ele tem de estar atento com a estratégia institucional. Todo desenvolvimento que passa pela área de RH ganha uma nova perspectiva, um novo sentido. A área não é apenas responsável pelo desenvolvimento das competências de ordem do setor público, oferece conteúdo técnico e trabalha a dimensão estratégica, permitindo que elas estejam ligadas às estratégias institucionais de cada secretaria, de cada órgão público, tentando o engajamento do gestor com a própria gestão. O papel do RH tem uma dimensão além do profissional, tem de desenvolver esses talentos, criar um horizonte de carreira para essas pessoas e trabalhar muito na dimensão do reconhecimento.
Como os gestores de pessoas do setor público devem motivar seus funcionários, uma vez que não possuem concorrência no mercado?
Temos de criar novos contextos de trabalho, novos sets organizacionais. Esse profissional jovem que entra no setor público é dinâmico, quer resultados mais próximos e rápidos. A cultura da gestão pública no passado dizia respeito àquela obediência baseada na hierarquia e não na competência. Essa nova geração está trazendo a desestabilização de valores consolidados. É preciso fazer uma disposição na perspectiva da revalorização, tanto desse profissional quanto na perspectiva da nossa herança que é muito baseada naquilo do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” – uma hierarquia de caráter rígido e com estações de trabalho fixas que, muitas vezes, não combina com o jeito desse novo gestor. Teremos de repensar o modelo de trabalho.
O senhor acha que a geração que está entrando no mercado gerará mudanças no dia a dia das empresas públicas?
Sim. Temos de fazer uma aliança do setor público com a iniciativa privada, criando anéis entre a dimensão do capital [privado] e a dimensão da classe trabalhadora e da sociedade civil. Precisamos criar esses elos no sentido dinâmico para conquistar o desenvolvimento social.
E os gestores estão preparados para recebê-los?
Acredito que ainda precisamos de uma mudança de mentalidade. Sempre houve choque de gerações, mas parece que agora esse choque é maior. Assim, além de preparar novas gerações, precisamos preparar novos gestores que vão receber esses profissionais. Se isso não acontecer, haverá um grande choque cultural que vai tirar a motivação do trabalho. Temos de repensar que a família contemporânea não é a família clássica, daquele pai que tinha autoridade. Há outras famílias que foram criadas e têm uma relação com o poder que é completamente diferente. Temos, sem dúvida, de preparar os gestores de forma ativa.