Durante meio século, o Brasil não conseguiu atrair investidores estrangeiros pela insegurança política e econômica. Vencidos, em parte, esses problemas, hoje é outro fenômeno que afugenta a entrada de capital externo no nosso país: a falta de infraestrutura básica. Leiam-se, também, gargalos no sistema educacional básico. Em pesquisa 1 de doutorado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o economista José Roberto Cunha Junior aponta que a baixa qualificação da mão de obra brasileira é um dos fatores que podem afastar os investidores estrangeiros do Brasil.
Não é por acaso que a tese levanta o problema. Vivemos na transição da Era da Informação para a Era do Conhecimento. Se antes alguns empregos não demandavam muitas qualificações técnicas, hoje passam a exigir conhecimentos básicos e específicos. De leitura para compreender a sinalização de obras, por exemplo, e de informática, para operar máquinas comandadas por softwares. A Fundação Dom Cabral (FDC) apresentou, no ano passado, a pesquisa 2 Carência de Profissionais no Brasil. A análise levou em conta profissionais dos níveis técnico, operacional, estratégico e tático. Do total, 92% das empresas admitiram ter dificuldades para contratar a mão de obra de que necessitavam. O problema se repete em percentuais semelhantes no país inteiro e para as companhias que atuam no exterior. As principais dificuldades são a escassez de profissionais qualificados (apontada por 81% dos entrevistados); a falta de trabalhadores com experiência na função (49%); e a deficiência na formação básica dos candidatos, apontada por 42% dos respondentes.
Para compensar a falta de qualidade dos profissionais no momento da contratação, a iniciativa privada, governos e sindicatos têm procurado outros caminhos para a formação de mão de obra. Esse é o caso da construtora Even, que resolveu montar salas de aula em canteiros de obras para melhorar a educação básica de seus trabalhadores. A Even começou a investir, a partir de 2008, no desenvolvimento dos profissionais por causa do alto índice de analfabetos funcionais que não possuíam a oportunidade de frequentar as salas de aula regulares. Os alunos do programa batizado de Elevação de escolaridade são principalmente carpinteiros, pedreiros, mestres e encarregados, com idades que variam entre 25 e 50 anos.
Eduardo Cytrynowicz, diretor-executivo de gente e gestão da Even, explica que a iniciativa foi uma estratégia para melhorar a performance dos profissionais. “O baixo nível de escolaridade afeta a comunicação, dificultando a compreensão das informações. É importante que o colaborador de obra saiba ler e, principalmente, entender sinalizações de segurança, instruções técnicas e outros conteúdos da rotina da obra.”
As aulas acontecem três vezes por semana, no final do expediente, e têm duração de 90 minutos. “Fizemos parceria com o Sesi, que seleciona bons professores, que tornam as aulas muito interessantes. Podem frequentar colaboradores não alfabetizados e aqueles que buscam aprimorar conhecimento”, afirma o diretor. Além da parceria com o Sesi, que já possui o know-how na área, outra iniciativa para manter a adesão dos trabalhadores ao programa é o diálogo aberto do RH da Even com seus operários. “Toda vez que iniciamos uma nova turma, visitamos o canteiro [de obra] e explicamos aos colaboradores todos os benefícios de investir em educação.”
E pelo visto a ideia tem dado certo. De 2008 a 2012, o programa já formou 500 trabalhadores. Entre eles o ajudante-geral Vivaldino Teodoro dos Santos. “A Even está nos qualificando para a gente poder crescer. Adorei o projeto”, afirma. Ele conta que já percebeu melhoria no seu desempenho de leitura e escrita. “Dá para ler com mais facilidade, inclusive as placas da obra. Agora, leio tudo. Eu tinha estudado muito pouco antes”, lembra. E o ajudante-geral não vai parar por aí. Santos afirma que vai se inscrever para o curso de informática que será fomentado pela Even. “De agora em diante, o que a empresa me oferecer eu vou abraçar porque é bom para mim e é algo que ninguém tira”, diz, entusiasmado.
O caso de Santos é compartilhado por muitas outras pessoas, que não têm a oportunidade de frequentar salas de aula regulares. Em geral, o trabalhador brasileiro apresenta um tempo de escolaridade baixo em relação a outros países, sem falar da qualidade de ensino. O pesquisador Paulo Roberto Corbucci, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirma que o desempenho dos estudantes brasileiros em avaliações internacionais tem melhorado, mas as notas ainda são muito baixas. “As empresas passaram a sentir a necessidade de investir mais na formação básica dos funcionários quando perceberam que eles tinham baixa capacidade de interpretação e que não teriam condições, em razão de outros compromissos e necessidades, de voltar a frequentar uma escola convencional”, analisa.
Para Roberto Catelli, coordenador de educação de jovens e adultos da ONG Ação Educativa, mais preocupante do que a situação atual é pensar que, pela qualidade do ensino, possivelmente cursos de reforço escolar ainda terão de ser dados para os adultos das próximas gerações. Ele conta que comerciantes e empresas do setor hoteleiro costumam procurar a entidade em busca de orientação sobre formas de aprimorar os conhecimentos básicos de seus profissionais. “Apesar de a criação dos cursos ser positiva, é preciso ficar atento para dar condições aos estudantes de conciliarem a vida profissional, estudantil e particular, pois a evasão nessa faixa etária costuma ser muito grande”, alerta o coordenador.
Educação profissionalizante
A diretora de Políticas de Educação Profissional do Ministério da Educação, Simone Valdete, afirma que a formação técnica dada hoje no Brasil pressupõe o repertório de conhecimento de quem cursou ou está cursando o ensino médio. O problema é que 60 milhões de brasileiros não concluíram o ensino fundamental. E o Brasil alcançou 8 milhões de matrículas no ensino médio, mas com altas taxas de reprovação e, sobretudo, de evasão. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Maria Clara di Pierro, especialista em educação de jovens e adultos, a questão não é um problema apenas do Brasil, e inclusive foi tema de uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Estamos em uma fase do conhecimento tecnológico que exige mais das pessoas do que algumas habilidades específicas. O mercado não tem mais o mesmo espaço para atividades simples e repetitivas”, analisa.
No caso da construção civil, por exemplo, os trabalhadores precisam estar preparados para trabalhar com novas tecnologias, atuar em diferentes ciclos da obra e propiciar uma maior economia de material. Para Maria Clara, o ensino para jovens e adultos ainda enfrenta grandes dificuldades por falta de profissionais especializados e de escolas específicas, com horários e rotinas mais flexíveis. A professora destaca que algumas iniciativas fora da escola conseguem bons resultados, principalmente quando profissionais, empresas e governos atuam em parceria e cada um entra com alguma contrapartida. Ela cita como exemplo de sucesso o Projeto Escola Zé Peão, parceria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa (PB) com a Universidade Federal da Paraíba.
Em 20 anos, 10 mil alunos passaram por suas salas de aula, sendo que metade concluiu o curso, equivalente aos quatro primeiros anos do ensino fundamental. As aulas são dadas nos canteiros de obras e, entre seus alunos, alguns já concluíram atualmente o ensino médio. Alunos de licenciatura da universidade participam dessa iniciativa como professores e, além disso, foi criado um material específico. “No começo, os empresários não queriam saber de escola em seus canteiros. Hoje, são eles que solicitam as aulas”, comemora a professora. Contudo, Maria Clara alerta que o principal desafio do projeto é diminuir o abandono da sala de aula: “A evasão é grande não só em razão dos fatores tradicionais que levam os adultos a deixar os estudos, mas também devido a transferências e à alta rotatividade do setor”, diz.
Apesar de desafios, os beneficiados aprovam o incentivo ao aprendizado. “Acho que é muito importante na minha vida, né? E na vida de todos os trabalhadores da construção. É uma oportunidade que a gente não teve quando criança. Aprender a ler e a escrever. Você chegar ao ponto de pegar uma folha, um contracheque e saber o que está ali, escrito, e assinar. Isso é muito importante”, afirma um aluno que aparece no vídeo em comemoração aos 20 anos do Projeto Escola Zé Peão.
Pesquisa
Série 1: Para a sua pesquisa, o economista José Roberto Cunha Junior se baseou em uma série de questionários enviados para executivos de empresas estrangeiras.
Grande porte 2: O levantamento foi feito com 130 empresas de grande porte de vários setores da economia, que juntas atuam em todas as regiões do país e movimentam em torno de 22% do PIB (Produto Interno Bruto).
As consequências negativas de pleno emprego
Geralmente, numa situação de altos índices de desemprego, o trabalhador sente a necessidade de aprimorar a sua formação para obter um posto de trabalho. As empresas buscam os mais qualificados em cada categoria e excluem os que não se encaixam no perfil pretendido. Nos últimos anos, essa não tem sido a lógica vigente no Brasil em importantes áreas de atuação. Segundo a pesquisa de emprego urbano feita pelo Dieese e pela Fundação Seade de São Paulo, os níveis de pessoas sem emprego estão apresentando quedas sucessivas de 2005 para cá. O desemprego em nove regiões metropolitanas medido pela pesquisa era de 17,9% em 2005 e fechou em 10,5% em 2011.
Prominp: educação para todos
Não é só no segmento da construção civil que iniciativas de aproximar as salas de aula do ambiente de trabalho fazem sucesso. O setor de combustíveis também tem um programa de qualificação desde 2003, que vem sendo ampliado depois da descoberta das reservas petrolíferas na camada do pré-sal. O Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás (Prominp) já ofereceu cursos de qualificação para profissionais de todos os níveis de formação, em 185 categorias profissionais em parceria com 80 instituições de ensino. Ao todo, mais de 78 mil pessoas foram qualificadas. Os cursos incluíam ainda o pagamento de bolsa-auxílio a desempregados.
Desde 2008, em parceria com o Ministério de Desenvolvimento Econômico e Social e governos municipais, o Prominp oferece cursos de reforço escolar, em especial para beneficiários do Bolsa Família, preparando-os para que possam acompanhar os cursos de qualificação profissional. A parceria atendeu mais de 30 mil pessoas para reforço escolar em oito estados; um terço delas havia cursado o ensino médio e os demais tinham formação apenas de ensino fundamental.