A inteligência artificial não provoca apenas uma revolução tecnológica ou produtiva. Ela também tem alto potencial de interferir, de forma profunda e silenciosa, na maneira como nos sentimos no trabalho.
Depois de explorarmos, nos três primeiros artigos da série, os impactos estruturais, éticos e culturais da IA no futuro do trabalho, avançamos agora para um ponto cada vez mais sensível: os efeitos emocionais e comportamentais que essa tecnologia tem causado nas pessoas.
Afinal, a IA não está apenas mudando o que fazemos, mas como nos percebemos dentro das organizações. E essa mudança, quando não acolhida com verdade e clareza, pode se traduzir em ansiedade, insegurança, desconexão e, por fim, resultar na improdutividade, um efeito colateral assimétrico ao que se busca com o avanço da IA no trabalho.
IA, ameaças invisíveis e o cérebro em estado de alerta
Nosso cérebro é biologicamente condicionado a reagir com estresse diante de ambiguidades, mudanças abruptas ou ameaças à previsibilidade. Quando algoritmos influenciam contratações, promoções ou desligamentos pouco compreendidos, surgem medo, perda de controle e desvalorização.
Um levantamento da Gartner mostrou que, apesar do aumento do uso individual de ferramentas de IA, “a produtividade coletiva foi impactada negativamente pela ansiedade generalizada sobre sua adoção acelerada”. Em outra pesquisa, a consultoria identificou que profissionais que temem ser substituídos pela IA apresentam 27% mais chances de pedir demissão.
A EY (Ernst & Young) também revelou que 75% dos profissionais temem que seus empregos se tornem obsoletos com o avanço da IA, e 65% relatam ansiedade constante diante dessa possibilidade.
Portanto, não estamos falando apenas de eficiência. Estamos falando da segurança emocional das pessoas diante de um futuro que parece cada vez menos controlável. E é nas organizações que essa ansiedade está sendo vivenciada, todos os dias.
SCARF: o que a IA está ativando em nós?
O modelo SCARF, criado pelo neurocientista David Rock, nos ajuda a entender de forma didática os potenciais gatilhos emocionais ativados em ambientes de mudança. Ele descreve cinco domínios neurológicos sensíveis à ameaça ou recompensa:
- Status – sensação de valor percebido;
- Certeza – previsibilidade sobre o futuro;
- Autonomia – controle sobre a própria jornada;
- Relacionamento – conexão e pertencimento;
- Justiça (Fairness) – percepção de equidade.
A IA pode pressionar todos esses domínios, dependendo de como for introduzida e usada. Veja alguns exemplos práticos:
- Sistemas de avaliação que ignoram contexto humano ativam ameaças de status;
- Falta de comunicação sobre as mudanças tecnológicas alimenta a incerteza;
- Automação imposta sem escuta reduz a autonomia dos colaboradores;
- Menor interação humana compromete o relacionamento e o senso de pertencimento;
- Algoritmos opacos podem comprometer a justiça ao reforçar desigualdades históricas.
Estudos mostram que ambientes com alta exposição à IA mal implementada estão correlacionados a queda de segurança psicológica e aumento de sintomas de depressão. A boa notícia: lideranças preparadas e éticas, têm um alto potencial de mitigação desses efeitos.
Práticas para reduzir ansiedade e humanizar a transição
Tanta incerteza, angústias e ansiedade não pode ser um fator de trava para a evolução da IA, dado que suas benesses fazem dela um caminho inexorável. Logo, o desafio é como inserir intencionalidade emocional nas escolhas tecnológicas e nas decisões organizacionais. Nessa direção, algumas práticas recomendadas seriam:
- Comunicação clara e antecipada sobre mudanças tecnológicas;
- Cocriação com os times nas soluções com IA;
- Espaços regulares de escuta e feedback sobre o impacto emocional;
- Revisão contínua dos algoritmos, com apoio do RH e das lideranças;
- Cenários de impacto transformados em planos de comunicação e gestão;
- Campanhas educativas internas sobre automação, viés e tomada de decisão baseada em dados.
O futuro emocional do trabalho também exige liderança
A IA não é apenas um desafio técnico, é também um desafio emocional e identitário. Ignorar essa dimensão compromete os ganhos que tanto esperamos da transformação digital. O cuidado com as pessoas precisa caminhar junto com o cuidado com os sistemas.
Líderes, RHs e executivos precisam atuar como curadores emocionais na era da IA, equilibrando performance tecnológica e ressonância humana. Boas práticas incluem acompanhar indicadores como bem-estar e turnover após a adoção de IA, conforme sugerem estudos recentes da Gartner.
Mais do que treinar máquinas, precisamos cuidar de quem vai trabalhar com elas. Se a IA está mudando o que fazemos, o próximo desafio será entender quem estamos nos tornando no trabalho.
A identidade profissional também está em transformação.