Nos últimos anos, diferentes pesquisas internacionais vêm apontando para uma transformação silenciosa, porém profunda: o trabalho está deixando de ser organizado apenas em torno de pessoas, cargos e funções estáveis e passa, cada vez mais, a se estruturar como um sistema vivo, dinâmico e híbrido. Um sistema no qual humanos e agentes de inteligência artificial passam a atuar juntos, de forma integrada – e, muitas vezes, ainda pouco compreendida.
O Work Trend Index 2025, da Microsoft, é uma dessas pesquisas. Importante, mas longe de ser a única. Estudos acadêmicos, análises estratégicas e, sobretudo, a observação atenta do cotidiano organizacional convergem para a mesma constatação: em um curto espaço de tempo, a gestão deixará de ser apenas a gestão de pessoas para se tornar a gestão de ecossistemas de trabalho compostos por humanos e agentes.
Para o RH, essa mudança não deveria ser lida como ameaça. Ela representa, talvez, uma das maiores oportunidades históricas de ressignificação da função.
Um cansaço que já estava presente
Muito antes da inteligência artificial ganhar protagonismo, o trabalho contemporâneo já dava sinais claros de esgotamento. Reuniões em excesso, agendas fragmentadas, aceleração contínua, pressão permanente por resultados e uma sensação difusa de perda de sentido tornaram-se parte do cotidiano de muitas organizações.
A entrada dos agentes de IA não cria esse cenário. Ela o torna visível. Ao ampliar velocidade, escala e capacidade de execução, a tecnologia obriga as organizações a encararem uma pergunta desconfortável, mas inevitável: o que, afinal, precisa permanecer humano no trabalho? Não por romantização do passado, nem por resistência à inovação, mas por responsabilidade com o presente e com o futuro das pessoas – e das próprias instituições.
Essa pergunta não pode ser respondida apenas por áreas técnicas, nem por decisões isoladas da liderança. Ela exige escuta, mediação, leitura fina do contexto e compreensão das dinâmicas humanas, conscientes e inconscientes, que sustentam, ou sabotam, qualquer transformação. É exatamente nesse ponto que o RH deixa de ser coadjuvante e passa a ocupar um lugar central.
O que significa, na prática, um ecossistema dinâmico e híbrido
Falar em ecossistema dinâmico e híbrido não é apenas falar de tecnologia convivendo com pessoas. Isso sempre existiu. O que muda agora é a natureza da tecnologia e, sobretudo, o lugar que ela passa a ocupar na organização do trabalho.
Nesse novo arranjo, os agentes de IA deixam de ser ferramentas acionadas pontualmente e passam a atuar como participantes ativos dos fluxos de trabalho. Executam tarefas, sugerem decisões, aprendem com interações anteriores e influenciam o ritmo e a lógica com que o trabalho acontece. O trabalho já não é exclusivamente humano, mas também não se torna totalmente automatizado. Ele passa a existir no entre.
Esse “entre” é o ponto mais delicado – e mais estratégico – do ecossistema. Ele é dinâmico porque já não se organiza de forma estável e previsível, como os modelos clássicos baseados em cargos fixos, descrições rígidas de função e organogramas lineares. O trabalho passa a se estruturar em torno de problemas a resolver, situações que exigem julgamento e entregas que pedem coordenação. Pessoas e agentes entram e saem dos fluxos conforme a necessidade. As equipes se transformam com mais rapidez. O valor deixa de estar na estabilidade da estrutura e passa a residir na capacidade de adaptação do sistema.
Isso exige algo que as organizações sempre tentaram evitar: instabilidade com sustentação. Não há mais uma forma única e definitiva de organizar o trabalho. Há arranjos provisórios, que precisam ser continuamente cuidados, ajustados e revistos.
Ele é híbrido porque nem tudo pode – nem deve – ser entregue à lógica da automação. Permanecem irredutivelmente humanas dimensões como julgamento ético, leitura de contexto, manejo de conflitos, construção de sentido e responsabilidade pelas consequências das decisões. A pergunta deixa de ser “o que a IA consegue fazer?” e passa a ser: o que precisa permanecer sob responsabilidade humana para que o trabalho continue sendo habitável?
O híbrido não é um meio-termo confortável. Ele é um campo permanente de tensão.
Um novo contrato simbólico de trabalho
Quando a gestão passa a lidar com ecossistemas híbridos, o trabalho deixa de ser apenas execução de tarefas e passa a ser regulação de interações: entre pessoas, entre sistemas, entre decisões e seus efeitos ao longo do tempo.
Nesse cenário, os riscos também mudam. Pessoas podem se sentir substituídas, invisíveis ou desorientadas. Lideranças podem se apoiar excessivamente na tecnologia para evitar conflitos difíceis. Sistemas inteligentes podem acelerar decisões que ainda precisariam de elaboração humana. Além disso, a IA reorganiza poder: redefine quem decide, quem ganha visibilidade, quem perde território e quem se protege atrás de algoritmos.
Nada disso é um problema técnico. São problemas organizacionais, emocionais, simbólicos e políticos. É nesse ponto que emerge um novo contrato de trabalho, menos explícito, porém decisivo: quanto mais inteligência artificial se integra aos processos, mais cresce a necessidade de sentido humano.
RH: muito além da função racional
Tradicionalmente, o RH esteve associado a processos, políticas, métricas e programas. Essa dimensão continua importante, mas ela já não é suficiente para dar conta do que está em jogo. No contexto dos ecossistemas humano – agente, o RH deixa de ser apenas uma função racional e passa a exercer um papel institucional e simbólico. Um papel que não se limita a “resolver problemas”, mas a sustentar o sistema quando ele entra em tensão.
Em um ecossistema dinâmico e híbrido, o RH torna-se a área que ajuda a organização a:
- sustentar a complexidade sem perder humanidade;
- dar contorno a angústias que não aparecem nos relatórios;
- criar limites onde a tecnologia parece não ter freios;
- e preservar vínculos em um ambiente cada vez mais acelerado.
Isso não significa que o RH carregue tudo sozinho. Ao contrário. Sua função é articular, provocar, traduzir e sustentar perguntas quando todos querem respostas rápidas. O RH passa a atuar menos como gestor de pessoas e mais como guardião da coerência do trabalho. Não controla tudo — e nem deve —, mas ajuda a evitar que o sistema se desorganize sob o peso de sua própria velocidade.
O tempo curto e a maturidade necessária
Outro aspecto decisivo é o tempo. Não estamos falando de uma transformação projetada para décadas à frente. Ela já está acontecendo e tende a se intensificar nos próximos meses e poucos anos. Esse curto horizonte gera ansiedade, mas também abre uma possibilidade rara de escolha consciente.
O RH pode reagir, limitando-se a treinar pessoas para novas ferramentas depois que as decisões já foram tomadas. Ou pode assumir um papel mais maduro e necessário: participar da arquitetura do novo modelo de trabalho, ajudando a organização a decidir não apenas como usar a IA, mas para quê – e com quais consequências humanas, culturais e políticas.
Assumir esse lugar exige menos discursos prontos e mais presença real. Exige escutar o que não aparece nos dashboards, sustentar conversas difíceis com lideranças pressionadas por custo e velocidade, e reconhecer que nem toda eficiência gera valor, assim como nem toda automação representa progresso.
Um convite às lideranças de RH
Se você hoje ocupa uma posição de liderança em RH, é provável que viva um movimento silencioso e profundo. Enquanto a organização acelera, as tecnologias avançam e as decisões parecem pedir respostas imediatas, algo mais sutil acontece no trabalho: vínculos se tensionam, sentidos se embaralham, e o humano pede espaço, mesmo quando quase ninguém quer parar para escutar.
Este texto não é um chamado ao sacrifício, nem à sobrecarga que ninguém vê. É um reconhecimento do lugar singular que o RH ocupa neste momento histórico. Um lugar onde não é preciso ter todas as respostas, nem controlar todos os movimentos, mas onde é possível sustentar perguntas vivas, oferecer contorno quando tudo corre rápido demais e lembrar à organização que nem tudo o que é eficiente constrói futuro.
Talvez o novo papel do RH não esteja em fazer mais, nem em dominar cada nova ferramenta que surge, mas em habitar com presença o seu lugar institucional. Um lugar que conecta pessoas, tecnologia e realidade; que acolhe a complexidade sem tentar simplificá-la à força; e que protege o trabalho de se tornar apenas desempenho, número ou ruído.
Neste tempo de transformação, o RH não é espectador – é ponto de passagem. Onde o humano encontra a tecnologia, onde o presente conversa com o futuro, onde a organização aprende a seguir sem perder a si mesma. E, desta vez, o RH não está à margem da mudança.
Ele está no coração do que está nascendo.
