Doutores da Alegria / crédito: Assessoria de imprensa |
Imagine uma sala repleta de palhaços fazendo estripulias para conseguir um emprego. Esse processo parece estranho, mas não para grupos que trabalham com a arte do entretenimento e do riso fácil. Fazer sorrir aqueles que estão doentes, acamados e deprimidos é o trabalho da ONG Doutores da Alegria, que visitam crianças e adolescentes em sete hospitais de São Paulo e quatro no Recife. Para atender esses clientes tão exigentes, a equipe formada por 40 palhaços profissionais, conhecidos como besteirologistas, dançam, cantam, criam brincadeiras e arrancam gargalhadas dos pequenos, contribuindo para a melhoria na saúde desses pacientes.
Anualmente, são realizadas cerca de 60 mil visitas nos hospitais abrangidos pela ONG e, para que o projeto tenha sucesso, não basta apenas ser engraçado. O Doutores da Alegria possui um processo rigoroso de recrutamento, seleção e capacitação de seus profissionais. Wellington Nogueira, fundador do projeto concedeu uma entrevista exclusiva à Melhor e contou como prepara e selecionam a equipe que faz a alegria da criançada nos hospitais.
Melhor: Sua ONG leva alegria e sorrisos. Como recrutar pessoas para levar esses sentimentos a um público/cliente tão seleto e especial? O que vocês levam em conta no momento de recrutar os profissionais? Quem realiza o recrutamento?
Nogueira: Para a equipe técnica, usamos os mesmos recursos de seleção de uma empresa; análise de currículos, testes técnicos e entrevistas. Contamos com parcerias com empresas especializadas que nos auxiliam nos processos de acordo com o cargo e a área desejada. O grande diferencial é ter pessoas motivadas e comprometidas pela causa e que entendam que o trabalho em uma organização é tão ou mais desafiante quanto trabalhar em uma empresa do segundo setor, sem aquela aura de “romantismo” que envolve normalmente o Terceiro Setor. A maior parte dos profissionais da equipe técnica veio do mercado corporativo, são altamente qualificados e com foco em trazer o profissionalismo desse mercado à organização.
Melhor: De onde surgiu o termo “Besteirologistas”? Como eles são recrutados e treinados? Após quanto tempo eles começam a fazer parte da equipe do Doutores da Alegria?
Nogueira: Os “médicos besteirologistas” dos Doutores da Alegria são artistas profissionais, em sua maioria, oriundos do teatro e do circo e especializados na linguagem do palhaço. Eles compartilham dos valores da organização para levar a arte do palhaço para dentro dos hospitais o ano todo, duas vezes por semana, seis horas por dia. Os artistas precisam ter registro na DRT (Delegacia Regional do Trabalho). A seleção acontece sempre que é necessário renovar o quadro de artistas e possui três etapas: análise de currículos, oficinas, e teste no hospital. O processo de seleção busca conhecer o participante sob vários aspectos: a prontidão no jogo, prática da improvisação, disponibilidade para o trabalho em duplas e repertório de habilidades. Depois de participarem de uma oficina de seleção, os selecionados passam pelo teste nos hospitais com dois coordenadores dos Doutores da Alegria. O treinamento tem um ano de duração e alterna a prática nos hospitais e trabalho em grupo na sede dos Doutores: ajustes da linguagem artística ao ambiente hospitalar, exploração do universo hospitalar, criação em duplas/trios e desenvolvimento do besteirólogo.
A atuação é gratuita para o hospital e para o público – crianças hospitalizadas, seus pais ou acompanhantes e profissionais de saúde–, mas o trabalho não é voluntário. Todos os artistas são remunerados, pois acreditamos que este investimento é fundamental para a atuação no hospital: tempo (constância e continuidade das visitas), preparo ético e qualidade artística.
Melhor: Quais competências, formações e conhecimentos são necessários para se trabalhar na equipe? Como identificar competências tão subjetivas?
Nogueira: As competências e conhecimentos decorrem da área em que se trabalha. Temos profissionais de diversas áreas de conhecimento: Administração, Economia, Sociologia, Relações Públicas, Publicidade, Tecnologia da Informação, Direito, entre outros, que ocupam cargos das áreas técnicas.
Melhor: Como o Doutores da Alegria motiva, incentiva e desenvolve os profissionais da equipe?
Nogueira: O Doutores da Alegria possui um ambiente organizacional mais informal e há uma preocupação com a qualidade de vida dos profissionais. Apesar dos desafios, a própria causa e o impacto social serem fatores motivadores para os profissionais que trabalham no escritório, a organização oferece salários e benefícios compatíveis com o mercado, e chegam a ser competitivos em comparação a outras organizações do setor. Por sermos uma organização sem fins lucrativos, há uma limitação maior em termos de recursos a serem utilizados para salários e benefícios. Temos plano estruturado de cargos e salários, que envolve as competências técnicas e habilidades necessárias para cada função e as contrapartidas. Além disso, estamos implementando, dentro da política de RH, esquema de home-office e dias livres. Treinamentos são realizados de acordo com as necessidades, por sermos uma equipe enxuta, não há um plano específico.
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Doutores da Alegria / crédito: Assessoria de imprensa |
Melhor: O Doutores da Alegria possuem outros cursos pagos e direcionados para pessoas que buscam desenvolver criatividade, trabalho em equipe, espontaneidade. Como a formação em palhaço pode contribuir e melhorar pessoas e práticas no universo corporativo?
Nogueira: A Escola do Doutores oferece cursos para públicos diversos com conteúdo, formato e carga horária – desde Palhaços para Curiosos, até cursos avançados para quem já está atuando com a máscara de palhaço. Todo o eventual lucro gerado pelos cursos pagos da Escola é direcionado à manutenção de nossas ações sociais, que incluem os programas de formação gratuitos. Um dos projetos mantidos pela organização e coordenado pela Escola é o Programa de Formação de Palhaços para Jovens, um programa de cunho artístico e social que permite jovens de 17 a 23 anos, oriundos de comunidades populares, iniciem uma carreira artística voltada para a linguagem do palhaço. Durante dois anos, os jovens artistas recebem uma bolsa-auxílio mensal para custear transporte e alimentação.
Melhor: Há instituições parceiras que realizam o mesmo tipo de trabalho que o Doutores da Alegria. Fale mais sobre elas e como vocês colaboram com essas iniciativas?
Nogueira: Respondendo a uma demanda antiga de pessoas e grupos que inspirados pelo encontro do palhaço com a criança no hospital, algumas pessoas tiveram iniciativas semelhantes às dos Doutores da Alegria. A organização lançou em 2007 o Palhaços em Rede, programa de Orientação e Formação para grupos e pessoas que atuam em hospitais utilizando a figura do palhaço. Atualmente, temos cerca de 1.158 grupos e/ou indivíduos cadastrados em nossa rede. O objetivo do Palhaços em Rede não é transformar os grupos em Doutores da Alegria, pelo contrário, os temas trabalhados nas oficinas procuram reforçar a identidade de cada um deles. Os Doutores da Alegria não tem uma receita, um manual técnico ou dicas a serem adotadas, mas uma experiência para ser dimensionada. Nas oficinas Palhaços em Rede levamos para os grupos as mesmas perguntas que nos fazemos constantemente: por que ir para o hospital? por que palhaço? por que médico?
Além das oficinas com foco no palhaço, temos também a Oficina Institucional que trata de questões estruturais dos projetos; organização interna dos grupos e o cuidado com seus integrantes; a importância do estabelecimento de parceria e boa relação com hospitais atendidos, temas inerentes à sustentabilidade.
Melhor: Vocês partiram para uma atuação empresarial. Explique sobre essa iniciativa e quais os resultados já alcançados.
Nogueira: A atuação nas empresas deve-se tanto à premissa dos Doutores da Alegria em ampliar sua atuação para além dos hospitais, como por demandas que começaram a surgir neste sentido. Nossas palestras apresentam, em caráter interativo, um resumo da filosofia e dos valores de nosso trabalho. Conduzidas por besteirologistas, as palestras são formatadas de maneira a aliar informação e entretenimento com base no humor e na apresentação descontraída. As palestras e intervenções são realizadas desde 1995, e atingiram cerca de meio milhão de pessoas. Há ainda o RISO 9000, para certificar a saúde do clima organizacional, Doutores da Alegria também considera imprescindível um exame das veias cômicas dos funcionários por meio de seus besteirologistas. Em algumas horas, alguns artistas do elenco percorrem o escritório, fazendo uma varredura por baias, salas de reunião, cafés e corredores, oxigenando o ambiente e lembrando sempre que bobagem pouca é desgraça! A alegria nas relações – com o trabalho, os colegas e até com as adversidades que vez ou outra insistem em acontecer – mantém a criatividade e a energia em alta e ainda transforma o ambiente com a quebra positiva da rotina.
Melhor: Quais exemplos e práticas os RHs podem absorver da Gestão de Pessoas do Doutores da Alegria?
Nogueira: Como diz a Besteirologista emérita Dra. Ferrara, assim como as crianças estão internadas em hospitais, os adultos estão internados nas empresas e locais de trabalho. Há anos também colecionamos frases que usam a saúde como metáfora para falar da cidade, do país, do mundo. “A cidade está na UTI”. “O mundo está doente”. Isso nos deixou confusos: onde começa e onde termina o hospital? Percebi que cultivamos doenças numa série de relações com a vida, e o local de trabalho tem se mostrado, infelizmente, um campo fértil para o cultivo de doenças. Será que precisamos chegar a esse ponto para repensar nossa relação com trabalho, ganhos e bem estar?
A grande maioria das pessoas internadas, ou melhor, que trabalham nas empresas, está em busca de mudanças para um ambiente de trabalho saudável. O guru corporativo Tom Peters, recentemente, afirmou que as empresas precisam de mais artistas e poetas em seus ambientes. Pode estar mais próximo do que imaginamos, mas não se engane: não adianta usar a arte para estimular o trabalhador a produzir mais e melhor. A especialidade do palhaço é romper convenções e inovar, convidando-nos à transformação de maneira divertida e envolvente, sem rir de nós, mas rindo conosco e levantando um espelho para que possamos refletir sobre a graça da vida.