Foram mais perguntas do que respostas. Até porque os tempos atuais demandam mais provocações do que certezas. Nesta conversa, por e-mail com Oscar Motomura, fundador e presidente do grupo Amana-Key, isso ficou bem nítido. Mais do que provocações, ele explicita alguns choques que a pandemia trouxe para a gestão, para a liderança e, claro, para a área de recursos humanos. E é do impacto desses choques em RH que ele explica por que a área poderia se reinventar a partir de uma folha em branco. Que tal cada um colocar nesse papel as possíveis respostas – ou mais dúvidas e provocações – a partir da seguinte questão: se você fosse cuidar das pessoas da sua organização como se deve, em níveis máximos de “humanização” e em elevado nível de consciência, como faria isso acontecer sem usar receitas obsoletas do passado? Mas, amtes de responder, veja também outras provocações de Motomura a seguir.
Quais os choques que a pandemia provocou ou tem provocado nas empresas?
Os choques aparentes são de conhecimento geral. O importante é reconhecer que há vários tipos relevantes de choque sobre os quais não conversamos, nem trabalhamos adequadamente. Alguns deles estão na área de estratégia: como ficam nossos planos num contexto em que o conceito de futuro é substituído pela ideia de um amanhã com muitas incógnitas? Nem o curtíssimo prazo está claro… Outros choques estão na área de gestão: como fica o conceito de “tempo cultural”, que mudou com a pandemia e nem todos perceberam? Ainda existem pessoas, inclusive na cúpula das organizações, que expressam prazos em meses e semanas, quando vivemos tempos de grandes desafios que exigem decisões e ações a cada “agora”? Outros choques menos aparentes estão, também, na área de liderança: temos, hoje, a necessidade de mais “líderes de líderes”, na medida em que precisamos, nestes novos tempos, de mais e mais pessoas com grande iniciativa e que se auto organizam e se autogerenciam em todos os cantos da organização?
E na área de RH, quais os choques?
Um exemplo: durante a pandemia, ficou mais claro quem da área de RH que efetivamente “entende de gente” e quem não? Quem verdadeiramente se importa com as pessoas e quem não? A pandemia vem escancarando a verdadeira filosofia dos dirigentes de recursos humanos? Uma preocupação verdadeira com o bem-estar das pessoas ou a busca de novas metodologias para “administrar” os recursos humanos da organização “sem perder o controle”? Valorizar cada pessoa da organização ou os resultados que essas pessoas podem/devem gerar? Dirigentes de RH criativos que geram soluções altamente inovadoras e até inéditas para as “equações” trazidas pela pandemia ou dirigentes que tentam adaptar práticas tradicionais aos novos desafios, esperando que o “normal” antigo volte o quanto antes? Aqui, alguém poderia dizer: é “uma coisa ou outra” ou seria “uma coisa e também a outra”? Seria fazer as duas coisas? Não é isso que a área de RH vem tentando fazer estes anos todos? Temos conseguido o equilíbrio 100/100 ou temos buscado o 50/50, no qual os dois lados perdem? Ou, então, pressupondo um equilíbrio que não existe? As pressões por resultados têm levado a algo mais próximo de 90/10 e todos parecem viver em zonas de autoengano? A pandemia vem trazendo todos esses paradoxos à mesa de forma mais clara? Estariam em pontos como esses o verdadeiro “choque” que não é algo aparente e óbvio?
Acredito que seremos surpreendidos muitas vezes daqui para a frente. “Pessoas improváveis” fazendo grande diferença em tempos de rápidas transformações…
E qual o perfil esperar das lideranças de RH daqui para a frente?
Talvez a resposta mais verdadeira a essa pergunta seja a de que precisamos parar de buscar “perfis”, que vem levando a “empacotar” as pessoas, até para facilitar o processo de “administrar os recursos humanos da organização” de um jeito que a cúpula (que muitas vezes busca resultados a qualquer custo) fique satisfeita. Muitas organizações buscam satisfazer tão somente o stakeholder acionista e deixam em segundo ou terceiro plano todos os outros stakeholders: funcionários; fornecedores/parceiros; a sociedade; o meio ambiente; e até mesmo os próprios clientes… Precisamos, em RH, de pessoas que enxerguem esses paradoxos e ajam sobre eles para evitar que essas distorções impeçam a evolução e levem a organização ao declínio? Como são os líderes necessários em nossas organizações e no próprio país? Cabe ao RH definir o perfil desses líderes porque assim manda o manual? Por outro lado, falamos cada vez mais intensamente sobre o valor da diversidade em nossas organizações e na sociedade. Algo essencial para maior criatividade, que leva a mais inovações… é mesmo por aí ou a valorização da diversidade tem mais a ver com a eliminação das desigualdades que vemos em nosso país e no mundo? Os dirigentes de RH não deveriam ser os primeiros a trabalhar esse problema crônico, que está escancarado à nossa volta? Há preconceitos em nossas organizações? A pandemia tem revelado facetas inéditas desses preconceitos? Essas questões têm sido trazidas à mesa da cúpula ou não? Por quê? Existem diferentes formas de medo ou de “assunção de riscos pessoais” que impedem uma conversa mais aberta e mais transparente sobre esses assuntos? A busca de “perfis” poderá, mais uma vez, fazer com que não honremos o fato de que líderes verdadeiros não podem ser “empacotados”. Aparecem com os mais diferentes perfis. Sabemos disso há muito tempo, mas continuamos a buscar padrões e perfis. Mesmo quando há esforços para descobrir o que há de comum em líderes muito diferentes, que se destacam em organizações e países, a sensação é de que é algo forçado e enquadrado no “modelo mental” e na cultura de quem está analisando. A busca de “receitas” está o tempo todo à nossa volta. A resposta mais direta a essa pergunta é que somente na prática iremos descobrir as pessoas que mais contribuirão ao processo de “humanização” das organizações e da sociedade nos novos tempos. Nas ações, pelos resultados. E resultados na forma de uma humanização genuína e não algo tão somente aparente e superficial. Acredito que seremos surpreendidos muitas vezes daqui para a frente. “Pessoas improváveis” fazendo grande diferença em tempos de rápidas transformações…
Ainda sobre liderança: o que é e como ser um líder radical?
Ser radical é ir à raiz, não ficar armadilhado no que é sintomático. Ir à raiz significa, por exemplo, questionar a liderança fragmentada e “especializada”. Liderança da área financeira, liderança de produção, liderança de RH é algo que não faz sentido. Liderança pressupõe uma visão 360 graus. Visão sistêmica. A capacidade de desempenhar diferentes papéis que vêm junto com todo e qualquer cargo de liderança. Nos programas de liderança da Amana-Key, trabalhamos com 12 papéis. É um conjunto de “chapéus” que vêm com a nomeação, seja para liderar finanças ou recursos humanos. Alguns exemplos: o papel de “estadista”, que exige do líder alta sensibilidade para o que acontece no contexto maior da sociedade, o contexto maior dentro do qual a organização está inserida. Faz sentido o Brasil estar sempre entre as dez maiores economias do mundo (PIB) e estar em centésimo lugar no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e em desigualdade? Ao vestir o papel de estadista, o líder de RH não deveria conhecer em profundidade quem são os colaboradores da organização e em que condições vivem? Se o líder pensar em FIB (Felicidade Interna Bruta) na organização e no país, o que mudaria em RH? Geração de mais emprego e renda? Ou asseguraria que todas as pessoas tivessem trabalhos dignos capazes de preencher os vazios existenciais que, em muitas organizações hoje, estão presentes até em líderes considerados de sucesso? Outro dos 12 papéis: o líder como empreendedor/realizador. É o líder de RH que se torna um perito em fazer as coisas acontecerem de forma rápida, simples e criativa, em vez de só ficar na dimensão das ideias, conceitos e planos, ou até criando processos que complicam e geram lentidão e burocracia. Ser radical, nesse sentido, significa preparar líderes multidisciplinares que poderiam liderar a área de finanças, marketing, produção, recursos humanos com igual eficácia. Assim, formaremos naturalmente CEOs completos e excepcionais. Ser radical significa, também, reconhecer que falta bom senso, discernimento e sabedoria a muitas pessoas em posição de poder na organização. Ser radical é reconhecer isso e investir no desenvolvimento dessa qualidade (sabedoria), que é algo de excepcional relevância para os tempos que vivemos e para os tempos repletos de desafios inéditos que se descortinam.
Ser radical, nesse sentido, significa preparar líderes multidisciplinares que poderiam liderar a área de finanças, marketing, produção, recursos humanos com igual eficácia. Assim, formaremos naturalmente CEOs completos e excepcionais
Fala-se muito em reinvenção do mercado, da carreira… como será, na sua opinião, o mercado de trabalho e o trabalho reinventados?
É frequente as pessoas me fazerem esse tipo de pergunta. Mesmo porque falamos em “viabilizar o impossível”, inovações radicais e reinvenções há décadas. Ultimamente, tenho brincado nas entrevistas. Eu digo: “Só um momento… preciso consultar minha bola de cristal”. Ninguém sabe. É claro que conseguimos observar tendências. O digital que vem para ficar… mudanças e transformações em velocidade sem precedentes… Como será o mercado, o trabalho reinventado nesse contexto? A pergunta pode pressupor que as reinvenções virão de algum lugar e que teremos de nos adaptar a elas. Reagir. Mas a questão básica aqui é: quem reinventa e quem define as tendências? A resposta óbvia é: nós mesmos. O que coletivamente fazemos nas organizações, no país e no mundo é que criam saltos de evolução, avanços extraordinários nas ciências e em tecnologia ou sucessivas crises. Mas quem cria avanços dignos de nota na área humana? A quem cabe criar trabalhos que atendam às necessidades da população e façam subir o IDH na velocidade necessária. A quem cabe resgatar a ética e valores no país como um todo? Como se eleva o nível de consciência das pessoas em nossas organizações, no governo, na sociedade civil? Nós? Você? Cabe aos líderes-especialistas (inclusive de RH) definir o grau de “humanização” que viveremos no futuro? Ou não serão os especialistas, mas os líderes 360º que, sempre muito presentes no aqui e agora, intuirão a melhor direção a seguir rumo ao desconhecido?
E como reinventar o RH?
Parte da resposta a esta pergunta já está no que foi trabalhado acima. Outra parte está nas entrelinhas do que já foi respondido. Descobrir o sutil nessas entrelinhas seria o desafio para seus leitores? Não é hora de receitas prontas. O tempo é de descoberta. Descoberta do quê? Do inédito. Ao buscarmos reinvenções, em vez de melhorias tão somente incrementais – mesmo antes da pandemia –, nossa recomendação sempre foi: que tal colocar uma folha em branco à sua frente, com uma única pergunta na mesa: se fôssemos criar nossa organização do zero, usando todos os recursos disponíveis no mundo hoje e com o know-how que acumulamos, como seria? A reinvenção do RH poderia partir de uma folha em branco… Se fôssemos cuidar das pessoas de nossa organização como se deve, em níveis máximos de “humanização” e em elevado nível de consciência, como faríamos isso acontecer sem usar receitas obsoletas do passado? Como viabilizaríamos isso num design que seja criado do zero? Eliminaríamos tudo o que fosse “mecânico” dos processos de cuidar das pessoas na organização? Tudo seria mais orgânico/biológico na premissa de que a organização é um organismo vivo e não uma máquina? Transformaríamos a organização em algo totalmente integrado, inclusivo, como se fôssemos um grande mutirão, em que um está ajudando o outro o tempo todo? A lista aqui poderia se estender por várias páginas, inclusive trazendo à tona tudo que não gostaríamos que existisse na organização reinventada (especialmente as “doenças crônicas” com as quais convivemos há década em nossas organizações, mormente as geradas pelos subterrâneos das politicagens, das manipulações, das omissões, dos preconceitos, da falta de respeito nas relações). E quem faz essa reinvenção? A própria área especializada de RH? Certamente isso não faria sentido. Uma reinvenção que faria a “humanização” ser plenamente resgatada nas organizações é tarefa de todos. Daí a visão de que essa reinvenção plena deveria ser feita em mutirão. Mas, ao buscar a reinvenção, muitos poderiam perguntar: para que se dar o trabalho de fazer tudo isso? Aqui cabe uma citação de Einstein, que me parece muito atual: “Perfeição dos meios e confusão quanto aos fins. É o que parece caracterizar os tempos em que vivemos”. Hoje, temos uma evolução tecnológica capaz de gerar verdadeiros milagres, a “perfeição dos meios”. O que fazer com essa tecnologia toda? Buscar que tipo de finalidade, que tipo de propósito com todos esses recursos à nossa disposição? Em muitas organizações, essa questão não está na mesa. Parece que é aqui que começa a confusão. “Missões” superficialmente criadas… A busca de objetivos e metas sem um sentido mais profundo, que deixa muitos “vazios existenciais” no íntimo das pessoas… Em que direção deveremos caminhar para preencher esses vazios? Haveria um “norte” mais nobre do que buscar o bem-estar da humanidade, a realização do bem comum, o honrar a vida em todo lugar, sem qualquer tipo de exclusão? Somente pessoas que entendem muito de gente teriam condições de ajudar a definir e realizar propósitos dessa amplitude, nesse nível de consciência? Onde essas pessoas estão? No RH? Ou em todo lugar? Estamos aqui refletindo sobre a reinvenção do RH ou das organizações e da própria vida em sociedade? (Entrevista a Gumae Carvalho)