Imagine a tecnologia elevada a um alto patamar, em que algoritmos, inteligência artificial, machine learning conversam entre si e interagem com a telemedicina. E, nessa conexão, conseguem mapear, tratar e engajar pacientes crônicos.
Mais ainda, com o auxílio do prontuário eletrônico, trazem o paciente para o centro do cuidado em um ambiente digital seguro. Pois bem. Este futuro que vinha sendo delineado vai tornando-se presente. Se é que se pode dizer que a pandemia trouxe algo de bom, esse lado seria a urgência de tornar real este projeto. Ou, como se dizia, tirá-lo do papel.
Há que se comemorar esse grande passo: paciente, que ganha autonomia sobre a sua saúde, e proteção ao ser poupado de ir a um pronto-socorro neste momento. E médico, por ampliar a visão sobre o paciente, graças à integração de dados.
“Quando olhamos para o mundo e a evolução dos setores, vemos uma transformação muito grande. Com a pandemia, isso ficou muito evidente e surgiu a necessidade de se reinventar. Eu penso muito em Darwin, nessas horas. Não é o mais forte nem o mais inteligente — o que tem a melhor capacidade de se adaptar é o que sobrevive”, reflete Eduardo Reis de Oliveira, CEO da SantéCorp, do Grupo Fleury.
Para o médico, porém, a medicina no Brasil está sempre um passo atrás. E quando comparamos nosso país com o mundo, estamos um pouco mais atrás.
“Os Estados Unidos têm, hoje, mais telemedicina do que medicina presencial. A China trabalha com cabines de telemedicina na rua com dispositivos de medição de temperatura, pressão, que dão todo o suporte para o médico. E aqui, antes do contexto da pandemia, tínhamos no máximo teleorientação.
Com a pandemia e a necessidade do isolamento, começamos a evoluir para atingir todo o potencial da telemedicina”, diz.
O RH pode esperar um divisor de águas na forma de cuidar de seus colaboradores. É sobre a mudança de cultura e as perspectivas para a gestão da saúde corporativa que o CEO conversa com a Melhor RH, a seguir.
Podemos recuar um passo para olhar o atendimento ao paciente antes da chegada da covid-19?
Sim. Médicos e pacientes ficavam isolados, e o único acesso à saúde era o pronto-socorro. Os médicos não utilizavam o recurso de telemedicina como poderiam e tanto eles quanto os pacientes olhavam para isso com certa ressalva. Das pessoas que tinham acesso a telemedicina, somente 0,5% utilizavam. São números muito baixos. Já durante a pandemia, em alguns serviços, este recurso chegou a 20%. Veja só o quanto aumentou! No pós-pandemia, acho que não voltaremos a números tão baixos quanto os da pré-pandemia, mas também não tão altos como agora. Mas o fato é que nós sairemos disso com uma nova cultura.
Qual era a maior resistência do médico para entrar na telemedicina?
Eu acho que é uma questão de formação. As universidades ainda não preparam os alunos para esse cenário digital. A medicina tem muito essa característica de valorizar a humanização, o contato, o acolhimento. E isso é mesmo fundamental.
Temos que ver a tecnologia associada como um ganho. Ela não veio para substituir, e sim para agregar; e isso é um ponto importante para as pessoas terem em mente.
Sempre praticamos a telemedicina. No início, no século 20, por carta, depois com bip, telefone fixo e, finalmente, celular. A telemedicina permite ao médico, e assegura ao paciente, um atendimento muito mais estruturado — não através de uma videochamada comum, mas de uma sala protegida digitalmente, como se estivessem dentro de um consultório.
A evolução trouxe a metodologia da telepropedêutica, usada para avaliar o paciente durante uma videochamada. O médico segue todo um protocolo para que, ao final da consulta, consiga se aproximar de uma hipótese de diagnóstico. Se ele estiver seguro dessa hipótese, já pode prescrever medicação, solicitar exames, emitir um atestado médico e enviar certificação digital. Hoje, as plataformas são estruturadas para isso.
E o prontuário eletrônico dá o grande respaldo para essa realização…
Sim, é o que suporta todo o processo. Você pode gravar a consulta para ter documentado e rever, se precisar, por exemplo. São artifícios para assegurar ao médico e ao paciente a melhor experiência naquele caso. O médico bem treinado vai executar uma boa telemedicina. Ou seja, em momento algum colocará em risco a vida do paciente. Os recursos serão usados de uma forma muito segura, ética e preservando a privacidade.
Falarei um pouco do início do nosso negócio e como o enxergamos. Começamos em 2019 com o objetivo de coordenar a saúde dos pacientes. Nosso marco zero foi: como coordenar a saúde dos pacientes? Só se consegue fazer isso com dados. Temos uma plataforma onde é possível colocar em um mesmo depositório dados de plano de saúde, medicina ocupacional, medicina preventiva, ambulatório, relação de vaga. Nessa base, alocamos todas as informações do paciente. Usando o CPF como raiz, acessamos tudo o que foi registrado e o trazemos para o centro do cuidado.
Pensando em um sistema de saúde fragmentado, o grande ganho é a integração de dados?
Sim. Nesse depositório alimentado com as informações de um indivíduo, começa-se a enxergar toda a sua jornada. Nosso trabalho foi iniciado em abril do ano passado. Denominamos o depositório de dados de Workstation. E uma vez estruturado, lançamos nossa primeira atenção primária dentro de uma unidade do Fleury. O Grupo tem, hoje, mais de 260 unidades no país, e nossa estratégia é implementar a atenção primária em parte dessas unidades. Já temos oito. Entretanto, com a pandemia, demos uma desacelerada e evoluímos na telemedicina.
Na atenção primária, o médico de família e a enfermeira coordenam efetivamente a saúde da pessoa. Atendem o doente, mas também o paciente saudável; estipulam bons hábitos para os crônicos. Uma equipe dessas pode coordenar cerca de 2.500 vidas. O médico começa a tomar conta dessa população, ou seja, vê-la de forma periódica para assegurar uma boa qualidade de saúde. E, principalmente, consegue acessar o prontuário eletrônico.
O paciente da telemedicina também pode ir para a atenção primária em uma consulta presencial. Mas ele não volta ao marco zero, pois apresentará o mesmo prontuário. Com isso, começamos a dar ao paciente todo o seu histórico de saúde.
Se incluirmos a carga do plano de saúde, essa informação vai para o prontuário, e o médico verá, por exemplo, que o paciente foi submetido a uma cirurgia há dois anos, internado em um hospital há um ano, passou pelo pronto-socorro há dois meses e fez tais exames. Está tudo ali e os dados irão sendo armazenados.
Ao contrário, se a empresa troca de plano de saúde, todo o histórico que se perde. E há muitas situações em que isso pode acontecer. O que fazemos é dar ao paciente o cabedal necessário para que ele consiga tomar conta da própria saúde. Óbvio que ainda temos muito que evoluir. No futuro, queremos permitir que qualquer médico que o atenda consiga acessar, colocar o dado e alimentar o prontuário.
Como vê o modelo de saúde corporativa atual?
Falando um pouco do sistema, hoje nós temos cerca de 210 milhões de brasileiros, sendo que 47 milhões (ou um quarto) têm acesso à saúde privada. Este um quarto é custeado efetivamente pelas empresas. Do outro lado, a operadora de saúde providencia médicos, hospitais e planos de saúde. É ela quem negocia com esses recursos os reajustes, e com os quais a empresa não tem qualquer ingerência.
Observamos médicos, hospitais e ambulatórios com a decepção de ganhar menos do que deveriam; as operadoras de saúde que fazem essa conexão com a sua margem totalmente consumida; o indivíduo não necessariamente bem atendido. E, ao final, a empresa não suporta pagar esses reajustes. É um sistema montado para quebrar.
Para complicar, como brasileiros, temos a cultura de resolver tudo de forma aguda e imediata. Ou seja, deixamos o problema evoluir e, se piorar muito, vamos para o pronto-socorro. Mas o pronto-socorro não é lugar para tratar de problema de saúde que não seja grave; e sim, para tratar urgência e emergência. No entanto, 70% da procura de pronto-socorro não são para urgência e emergência. Nós temos uma utilização indevida deste recurso, que é caro e não assegura ao paciente o tratamento mais adequado.
E qual é o maior desafio para o RH no contexto atual?
A grande dificuldade do RH, hoje, é chegar ao fim do período e dizer “eu estou recebendo reajuste de x%. Isso é muito ou pouco?”. Ele não sabe responder. Isso porque a modalidade com que se trabalha, hoje, é sempre com três meses de atraso. Em uma reunião com o comitê de saúde, é sempre mostrado ao RH o que ocorreu há três meses, e o que foi feito na época. A situação fica arrastada e não há quase ação sobre ela.
A empresa precisa visualizar todos os indicadores para que possa fazer a gestão sobre sua população. Nós temos que dar a melhor integração de dados que lhe permita fazer isso. Se reunirmos todos os dados em um lugar, já começamos a trazer uma luz para algo que a empresa possa atuar e gerenciar. Diante dessas informações, é possível mudar a estratégia para conseguir uma gestão mais efetiva e a integração vai auxiliar nisso.
É uma gestão com indicadores para correções de rumo em que o RH monta a estratégia, mensura o resultado e vai corrigindo com o decorrer do tempo. O gestor saberá quanto gastou, onde, quanto economizou e o que precisa fazer para conter desperdício. Terá visibilidade e indicadores para ver sua população, os ofensores dentro da apólice.
E quando trazemos isso para telemedicina, criamos uma nova cultura. As pessoas vão acionar esse recurso e boa parte dos problemas se resolverá ali. O médico vai prescrever, marcar um exame. E se for uma emergência, encaminhará o paciente ao direcionamento correto, que é o pronto-socorro. Se achar importante fazer uma consulta presencial, encaminhará esse paciente para a atenção primária.
O dinheiro é muito melhor usado e tem muito mais retorno quando é investido em práticas preventivas. Isso é feito ao abordar o paciente para informá-lo de seu próprio problema de saúde. Senão, ele irá de médico em médico. E a medicina, tão segregada em especialidades, não resolverá o problema.
Como a empresa pode mapear e acompanhar os seus crônicos com a ajuda da tecnologia?
Existe um desafio muito grande no desenho atual de gestão de crônicos, que é como mudar o comportamento das pessoas. A maneira como está estruturada é desafiadora. Muitas vezes, a enfermeira tem seus sistemas e protocolos. Ela liga para o paciente, faz esse seguimento. Porém, não são muitos os pacientes que mudam seus hábitos e passam a controlar a saúde, engajando-se nessa nova modalidade.
O primeiro passo é identificar quem são os pacientes crônicos. Usamos os dados da operadora de saúde, criamos algoritmos que nos aproximem de potenciais crônicos. Usando o exemplo de diabetes: se a pessoa fez três exames de glicemia, é um potencial diabético. Outra fez eletrocardiograma, teste de esteira e procurou um cardiologista. Ela é um potencial cardiopata. Procuramos esses pacientes, fazemos um ‘pente fino’ para constatar se realmente são crônicos. Sendo, os convidamos a participar do programa de gestão de crônicos.
Quando começamos a integrar dados — do ocupacional, do ambulatório, da operadora — refinamos a capacidade de obter um diagnóstico mais preciso desses pacientes. Ao inserir o nome e o CPF do paciente, todos os dados disponíveis dessa pessoa no grupo sobem para o prontuário imediatamente.
A integração de dados ajuda a identificar melhor o crônico. E a telemedicina tem um papel importante na gestão desse crônico. Mas o grande diferencial desse engajamento é a atenção primária, que traz consigo o conceito do médico de família.
Uma vez identificado o crônico, a enfermeira pede o exame pelo aplicativo e o resultado vai para o médico, que já o inclui ao prontuário. Dias depois, ele esclarece ao paciente a necessidade de consultas periódicas. No dia anterior à consulta, é enviado um lembrete. Caso ele falte, a enfermeira ligará para saber o que houve e começará a trazer a pessoa para dentro do sistema, integrando-a efetivamente.
Com o uso de I.A., busca-se encontrar a melhor forma de se comunicar com o paciente — via aplicativo ou SMS, a que horas quer receber a mensagem e qual o conteúdo da mensagem. Essa inteligência artificial se molda para o paciente. Ele começa a se identificar e a se engajar para além da atenção primária e da telemedicina. A consequência é melhorar seus cuidados com a saúde. Com tudo isso, falamos de ciências de dados para conhecer essa população. Ou seja, pegar o dado e o trabalhar a partir de algoritmos, Inteligência Artificial, Machine Learning para trazer cada vez mais soluções preventivas e precoces.
Na primeira mudança comportamental, poderá agir para que a pessoa não evolua para uma doença mais grave em alguns meses. Atualmente, trabalhamos com pacientes com doenças insaráveis, mas toda essa ciência de dados vai nos permitir atuar de maneira mais personalizada e preventiva.
O que fazer para quebrar a resistência cultural? Qual é a ideia central para o RH quanto aos cuidados dos seus colaboradores, daqui em diante?
Ciência de dados. Isso vai dar condição ao RH de enxergar sua população, definir uma estratégia de atuação, mensurar os resultados e fazer correções de rumo. E não o contrário, tomar decisões sem a certeza de que são as melhores a serem tomadas.
O dever do RH é tomar decisões com base em dados, e a ciência de dados pode embasar essa tomada de decisão. Quando fazemos isso, dando o atendimento de que cada um necessita, geramos mais humanidade, coordenação, dado e, ao final, isso custa menos.
A empresa se beneficia por pagar menos, a operadora mantém sua margem para operacionalizar, pois preserva o cliente e começamos, com isso, a trazer a sustentabilidade do sistema. É mudando a forma de consumir saúde que conseguiremos evoluir para isso. [Inês Pereira, revista Melhor RH, Ed. 391]