Quem passou pelo final dos anos 80 lembra-se do Ultrage a Rigor entoando a canção de deleite dos adolescentes enamorados por si mesmos: “Eu me amo, eu me amo. Eu não posso mais viver sem mim”.
Os anos se passaram e os adolescentes viraram líderes. como tais, reforçaram o desafio humano caracterizado pelo mito de Narciso — o belo teria uma longa vida, desde que nunca visse seu próprio rosto. Contudo, ao ver seu próprio reflexo na lagoa de Eco, o jovem apaixonou-se por si mesmo e definhou até morrer.
Narciso, como arquétipo, emerge então nas mais corriqueiras cenas do dia a dia das organizações (inclusive nos ambientes on-line):
- No diálogo entre líderes, no qual o tom de voz vai aumentando e a disputa para ver quem está certo vence a vontade de solucionar o problema.
- Na reunião em que o chefe convoca a todos e somente ele fala.
- Na conversa entre pares em que a disputa intelectual faz dar a volta ao mundo e o foco sai totalmente da pauta inicial.
- Na má qualidade das decisões, quando o processo decisório foi contaminado pela disputa para ver quem aparece mais, quem é mais reconhecido ou quem foi o protagonista da decisão.
- No envio, para um colega ao lado, de um elaborado texto por WhatsApp, quando a solução mais simples e eficaz seria sentar na frente dele e conversar.
- Na relação com o cliente, cuja incapacidade de ouvir impede o entendimento das reais necessidades e desejos.
Estabelecer confiança, atuar empaticamente, agir colaborativamente, trabalhar em equipe são algumas das competências sociais necessárias em qualquer organização, mas que encontram um grande vilão: o EGO.
O Ego, usado aqui em seu significado comum e coloquial (e não a definição psicanalítica), exige exposição, autoafirmação e reconhecimento. Está presente como poderosa sombra nas relações humanas e é uma grande barreira para compreensão, cooperação e conexão entre pessoas.
O Ego usa a vaidade e o poder como alimento. É a autoimportância em ação, a imposição do meu EU sobre o EU do outro. Ele nos furta a consciência e, assim, agimos com impaciência, autoritarismo e até agressividade.
Alguns resultados da dominação do Ego nas lideranças são bem conhecidos: ambiente pouco colaborativo e criativo, conflitos, clima ruim, desengajamento das pessoas, dificuldade de captação e retenção de talentos (que são talentos porque trazem novas formas de pensar, sentir e agir).
Rudolf Steiner, em Filosofia da Liberdade, cita que “o ser humano parece se fazer cego, quando ele é forçado a inserir a vida de representações mentais entre o mundo e si mesmo”.
As necessidades e crenças geradas pelo Ego atuam como essas representações mentais “cegando” nosso pensar, tumultuando o nosso sentir e contaminando nosso agir.
Estou consciente do que estou fazendo ou me permitindo ser dominado pelo meu Ego? Quem está no comando agora? São perguntas necessárias porque, quando dominados, “Somos cegos que vendo, não veem”, como disse José Saramago.
Os inúmeros casos práticos que vivencio em clientes me mostraram que, quando neutralizamos o Ego, é mais fácil nos mantermos no momento presente e a paz é instalada.
Como o Ego é alimentado de expectativas que normalmente são projeções para o futuro (reconhecimento, status…), ele nos afasta do momento presente. Isso nos dificulta tratar as questões complexas que precisam de atenção plena e profundidade de análise e discussão.
Os resultados deste afastamento , além de ansiedade e estresse, são decisões superficiais que resolvem as consequências e não as causas originais dos problemas.
Grupos de trabalho maduros, que controlam seus Egos, são muito mais produtivos, efetivos e saudáveis.
Na prática, vejo alguns impulsos ou acordos que, quando conversados abertamente entre as pessoas, trazem consciência e colaboraram com o amadurecimento e a consequente neutralização do Ego:
1 – Focar em resolver o problema e não em estar certo.
São inúmeras as reuniões de trabalho em que se perde muito tempo e energia para provar quem está certo (ou errado!) e, com isso, o foco na resolução do problema se perde. Os Egos brigam e quem vence é o problema.
2 – Assumir que nós somos os donos dos nossos comportamentos/ sentimentos.
É comum dizermos “eu agi assim” porque fulano fez isso ou sicrano disse aquilo. Reclamamos: “fulano não muda”! Faz sentido responsabilizar/culpar outras pessoas pelos nossos atos?
Nosso Ego se ofende e se enfurece, nos fazendo entender que há “razões” suficientes para terceirizar a responsabilidade pelos nossos atos.
Nós é que somos responsáveis, quem nos irrita nos domina. Faz sentido esperar um resultado diferente se eu espero que a mudança venha de uma outra pessoa? A frase de Steiner traz luz: “A questão não é como mudar o outro, mas o que eu preciso mudar em mim para que o outro mude”.
3 – Focar no aprendizado e na evolução, não nas lamentações das derrotas/erros.
Quando nosso foco passa a ser o aprendizado, liberamos a necessidade de acertar/vencer para a oportunidade de sermos cada vez melhores como indivíduos, grupos e organizações.
Individualmente e em grupo, perdemos muito tempo em culpar e lamentar as perdas/derrotas e sobra pouco tempo e energia para identificar qual foi o aprendizado extraído das situações. A boa colheita de amanhã será resultado deste processo de aprendizado de hoje.
4 – Adotar uma metodologia de tomada de decisão baseada em perguntas.
O Ego está nas respostas. A ausência dele, nas perguntas. Fomos criados e condicionados a dar respostas. Desde a escola, esperam respostas de nós.
Contudo, o desenvolvimento, a descoberta, a criatividade e o engajamento nascem das perguntas. São com elas que entendemos o outro e suas ideias. São as perguntas que conectam as pessoas, nos fazem pensar e abrem novas possibilidades.
A resposta é o bolo pronto. A pergunta é a possibilidade de inúmeros ingredientes na mesa para preparar. Saber fazer perguntas é uma das competências mais importantes da gestão.
5- Estar em constante processo de autoconhecimento e autodesenvolvimento
Para mudar crenças/hábitos e superar as representações mentais que nos limitam é necessário grande força interior. Essa energia precisa ser criada internamente.
Tente desabrochar uma flor com suas mãos e a flor se despedaçará. Contudo, quando a flor consegue acumular energia suficiente, ela desabrocha como em um espetáculo.
A força interior é fruto de um processo consciente de autodesenvolvimento do indivíduo e do grupo.
Somos um grande castelo com infinitas janelas fechadas. A cada passo da jornada de autoconhecimento, uma janela se abre e a luz permite que entendamos algo.
É uma deliciosa jornada sem fim. A cada passo, uma nova descoberta e a certeza socrática de que “só sei que nada sei”.