O mundo empresarial alemão engloba cerca de 3 milhões de empresas, o que surpreende num país de 80 milhões de habitantes em 357 mil km², área 7% menor do que a soma de RS e SC. Em torno de 14.000 são sociedades por ações, das quais cerca de 4.000 são consideradas “grandes”, por terem mais de 500 funcionários. Destas, apenas 700 são abertas e negociadas em Bolsa. Depois, vem um grupo de cerca de 700 mil companhias de responsabilidade limitada, geralmente médias ou mesmo grandes. Finalmente existem mais de 2 milhões de micro e pequenas empresas, essencialmente familiares, formadas por associação de capital de 2 ou poucas pessoas, nas quais pelo menos 1 sócio é pessoalmente responsável – com todo seu patrimônio – por tudo que acontece na companhia. Estas últimas, embora pequenas e locais, representam a base da estrutura empresarial alemã, pois abastecem as abertas e negociadas em bolsa, que por sua vez suprem as poderosas formadas por sociedades por ações.
A estrutura de Governança dessas empresas tem enfoques e práticas profundamente distintas do modelo anglo-americano no qual o Brasil se inspira, das quais se destacam:
A – O sistema de “Conselho” é bi-cameral, existindo um “Conselho de Supervisão” e um “Conselho de Gestão”
B – O de “Supervisão” tem alguma semelhança com o habitual “Conselho de Administração” – é eleito pelos acionistas, indica a auditoria externa, elege os diretores executivos membros do “Conselho de Gestão”, valida a estratégia e confere a performance do Conselho de Gestão – mas na realidade se posiciona muito mais como o brasileiro “Conselho Fiscal”, com a função de verificar e zelar por boa atitude, legalidade, ações desse Conselho de Gestão no interesse de todos os acionistas.
C – O “Conselho de Supervisão” tem menos ingerência e orientação à diretoria executiva (“Conselho de Gestão”) do que estamos habituados e se reúne em torno de 4 vezes ao ano. Mas inclui em sua estrutura “comitês” (auditoria, finanças, pessoas, estratégia, etc), dos quais só participam “Conselheiros”, os quais se reúnem com frequência geralmente mensal para monitoramento, fiscalização e supervisão desses temas executivos.
D – O “Conselho de Gestão” é liderado por um CEO, cuja atuação é focada na busca do consenso entre seus liderados diretores. Apenas na impossibilidade disso, valerá seu voto de desempate ou sua determinação, sendo esta uma das bases da lógica gerencial alemã.
E – Nas sociedades por ações existe a imposição legal de participação de representantes dos funcionários no “Conselho de Supervisão”, em percentual crescente proporcional ao tamanho das empresas, chegando a 50% nas com mais de 2.000 funcionários. Aqui também prevalece a lógica da busca do consenso, reservando-se a eventual definição deliberativa ao Presidente do Conselho. Cabe registrar que diante da dimensão quantitativa dos 3 tipos de sociedades antes descrita, o número de casos de participação de funcionários nos Conselhos de Supervisão não é significativo.
Entretanto, as maiores distinções entre o modelo germânico e aquele ao qual estamos acostumados residem em aspectos e considerações comportamentais e de valores, dentre as quais merecem registro:
1 – Enquanto a estrutura de governança anglo-americana é focada especialmente no resultado para os acionistas, o modelo alemão leva em consideração o benefício e satisfação de todas as partes relacionadas (“stakeholders”), i.e., funcionários, fornecedores, clientes, credores, acionistas e a comunidade / Estado, com a visão clara de que se todos estiverem satisfeitos a empresa será um sucesso e os acionistas muito beneficiados. Esta responsabilidade corporativa é parte da estratégia da organização.
2 – As consequências desse enfoque holístico são extraordinárias:
A) Uma visão de longo prazo, sem as pressões de resultados mensais ou trimestrais;
B) A prática de uma estrutura financeira menos alavancada e arriscada, pois séculos de história mostraram que é preciso estar precavido para guerras devastadoras;
C) Acionistas – inclusive e especialmente os familiares – muito mais próximos, atentos, participantes e vigilantes no Conselho de Supervisão;
D) As empresas familiares se vendo e posicionando como dinastias, ou seja, como detentoras de um patrimônio familiar a ser preservado e desenvolvido para benefício de gerações futuras dentro de uma visão coletiva de família.
E) O corolário disso é a visão de mundo, a inovação, a modernidade, o planejamento, a preparação e qualificação dos herdeiros para a supervisão dos negócios com uma postura de “sócios profissionais”, a formal transmissão e preservação de valores e princípios, a criação de estruturas societárias e de governança que protejam contra conflitos e preservem o patrimônio.
Tudo isso nos faz entender porque o mercado de capitais alemão é restrito e poucas empresas sejam de capital aberto: a pulverização de capital e a entrada de investidores externos certamente trariam reflexos desinteressantes para as prevalecentes considerações de timing financeiro, valores, visões, expectativas e objetivos corporativos. Até se encontrarão aberturas, joint ventures ou associações em subsidiárias, mas não nas holdings e controladoras com foco dinástico de gerações. A preservação e expansão das empresas é baseada na geração interna de resultados e em ponderados apoios creditícios providos a taxas viáveis decorrentes de um país estável, organizado e regulado, sustentado por um sistema financeiro compatível com esse cenário, inclusive com uma poderosíssima máquina de cooperativas de crédito.
Os alemães são um livro aberto e não escondem nada de seu sistema. Seria maravilhoso, mas é difícil copiá-lo, pois seus fundamentos residem em qualificada educação para todos, valorização do trabalho, empreendedorismo, espírito coletivo e busca de consenso – tanto no âmbito societário, quanto gerencial ou mesmo público – respeito irrestrito às leis, visão dinástica e de longo prazo, planejamento, foco em valorização patrimonial, tudo conduzido com cuidadoso conservadorismo financeiro aprendido ao longo de séculos de guerras, privações, perdas e sofrimento. A síntese da Alemanha e da própria Governança Corporativa lá praticada é: “resultado, como objetivo; gerações, como perspectiva; o coletivo, como referência e a lei, como base”.
Telmo Schoeler é sócio-diretor da Strategos Consultoria Empresarial e presidente da Orchestra – Soluções Empresariais.