Com mais de duas décadas de atuação executiva, tenho acompanhado de perto as transformações que moldam o mundo do trabalho. Hoje, em meu papel como jurado do Melhor RH Innovation, tenho o privilégio de analisar iniciativas e estratégias que refletem não apenas o presente da nossa área, mas também os caminhos emergentes diante da ascensão da inteligência artificial como força estruturante nas organizações.
Já não falamos de futuro. A IA está presente nas decisões estratégicas, nos processos seletivos, nos programas de capacitação e até nos dilemas éticos do cotidiano corporativo. Essa inflexão global é refletida de forma clara no Future of Jobs Report 2025, do World Economic Forum, que destaca três fenômenos para os próximos anos:
● Adoção massiva da IA nos negócios: 86% das empresas esperam transformar seus modelos operacionais com base nessas tecnologias;
● Reconfiguração da força de trabalho: estima-se a criação de 170 milhões de novos empregos e a extinção de mais de 90 milhões — um saldo líquido positivo, mas disruptivo;
● Atualização acelerada de competências: mais de 40% das habilidades atuais precisarão ser requalificadas para atender à demanda crescente por IA, big data, cibersegurança, pensamento crítico, empatia e inteligência emocional.
Diante disso, surgem perguntas urgentes: como liderar num contexto de disrupção permanente? Como preparar pessoas para funções que ainda não existem? Como equilibrar algoritmos, intuição, ética e empatia nas decisões organizacionais?
Não tenho todas as respostas, e desconfio de quem diz ter. Mas compartilho a seguir algumas reflexões que podem ajudar líderes, profissionais e áreas de RH a atravessar essa transição com responsabilidade, discernimento e estratégia — sem fatalismos, nem promessas simplistas de que “se quisermos, tudo dará certo”. Sabemos que não é bem assim.
1. IA-First: antes de contratar, pensar em automatizar, potencializar e integrar
Organizações verdadeiramente preparadas para o futuro não se perguntam apenas “quem vamos contratar?” ou “quais competências precisamos?”, mas sim:
“Essa atividade pode ser potencializada — ou até substituída — por inteligência artificial antes mesmo de abrir um processo seletivo?”
Essa inversão de lógica é o primeiro passo para evitar decisões caras, tardias e desalinhadas com a realidade tecnológica. Adotar uma mentalidade IA-First é considerar a tecnologia como ponto de partida da estratégia organizacional, não como recurso de última hora. Isso muda a forma como dimensionamos equipes, planejamos estruturas e redesenhamos fluxos de trabalho.
2. RH como orquestrador de recursos: humanos e digitais
O papel do RH está em expansão. Continuamos responsáveis por atrair, cuidar e desenvolver pessoas, mas também nos tornamos curadores de tecnologias, integradores de sistemas e viabilizadores de conexões entre capacidades humanas e inteligência de máquina.
O RH do presente — e, certamente, do futuro — é aquele que entende tanto de gente quanto de dados. Que sabe mediar conflitos, mas também parametrizar ferramentas. E que cria ambientes em que talento humano e tecnologia não competem, mas se potencializam mutuamente com ética e propósito.
3. Produtividade não é fazer menos, é entregar mais com “múltiplas inteligências”
Há quem enxergue na IA uma promessa de jornadas de trabalho mais leves. Mas a verdadeira virada está em como ampliamos o impacto daquilo que fazemos, e não apenas em reduzir o esforço.
A diferença estará entre quem usa a IA para repetir o mesmo com mais eficiência… e quem a utiliza para criar algo, mais estratégico, mais relevante. Pode parecer clichê, mas é uma realidade inexorável: não seremos substituídos pela IA, mas, sim, por pessoas que souberem usá-la melhor do que nós.
4. A transição já começou — negar isso é perder relevância
Muitos ainda tratam essa mudança como algo distante. Mas o momento da virada já passou. O roteiro está sendo escrito, as cenas estão sendo filmadas, e a edição final do “filme” já começou. O risco maior, agora, é o da paralisia — aquele velho efeito do “sapo na panela”, que não percebe a mudança de temperatura até ser tarde demais. Ignorar essa transição é perder vantagem competitiva. E, no ritmo em que as transformações ocorrem, isso significa também perder propósito, eficiência e relevância.
5. AGI à vista: quando a inteligência artificial for mais inteligente do que nós
A chegada da AGI (Inteligência Artificial Geral) não é mais uma hipótese distante. Nos próximos 10 a 20 anos, conviveremos com uma forma de inteligência superior à humana em muitas dimensões operacionais e analíticas.
Essa será uma ruptura histórica — e inédita. Pela primeira vez, a humanidade terá de lidar com um tipo de inteligência que ela mesma criou, mas que não domina plenamente. A grande questão será: seremos protagonistas conscientes dessa nova era ou passageiros surpresos com os rumos tomados?
6. O humano como diferencial competitivo
Se a execução técnica e repetitiva será cada vez mais absorvida por máquinas, nossa vantagem estará em cultivar o que não pode ser automatizado: empatia, criatividade, senso ético, capacidade de improvisar, lidar com ambiguidade e fazer perguntas significativas. Essas não são “soft skills” — são habilidades centrais, estruturantes, e cada vez mais escassas. Desenvolvê-las será o diferencial entre quem lidera o futuro e quem apenas tenta acompanhá-lo.
Conclusão: entre o heroísmo e o colapso, há a responsabilidade
O futuro do trabalho, infelizmente não será gentil com quem negar a mudança — mas também não será generoso com quem se apegar a atalhos fáceis ou soluções mágicas. É hora de abandonar tanto o vitimismo quanto o otimismo ingênuo.
Encarar essa transição exige preparo, humildade e uma nova disciplina: a capacidade de pensar o futuro de forma ativa, não apenas reativa. Esse é um desafio real. Afinal, somos formados para tomar decisões com base em evidências do passado. Mas, agora, é essencial desenvolver a habilidade de projetar o futuro, por meio da construção de cenários e atuar com lucidez diante da incerteza. Certamente não temos todas as respostas. Mas, com certeza, podemos — e devemos — aprender a fazer melhores perguntas. Essa, possivelmente, será uma das competências mais estratégica dos próximos anos.