A identidade de uma organização é composta essencialmente pelas diretrizes corporativas que se apresentam por meio de sua missão. Hoje muitos as reconhecem como propósito e valores, que por sua vez se complementam em competências organizacionais e individuas, políticas e processos que se materializam de forma prática no dia a dia.
Esses aspectos podem ser identificados nos ritos, condutas, jeito de se relacionar, trabalhar, decidir, criar, negociar e se vestir das pessoas dentro das organizações. Indo além, as diretrizes de uma corporação definem direta ou indiretamente também a localização e o layout dos espaços físicos de trabalho, algo que, ao final, chamamos de cultura organizacional.
Logo, a materialização dos seus escritórios, lojas, fábricas, centros de distribuição, ou seja, seus espaços físicos e de convivência, são considerados pelas organizações como um dos elementos fundamentais para que a tal cultura organizacional seja constituída, consolidada e aprimorada. Um entendimento secular e que segue persistente no empirismo dos modelos organizacionais, mesmo considerando os avanços tecnológicos e, até mesmo, a evolução da sociedade com seus desafios e revisão de princípios e valores éticos e culturais.
Portanto, não foi por acaso que o advento da pandemia da Covid-19, no início de 2020, tirou todos do eixo sobre os vários aspectos fundamentais de como as nossas vidas estavam organizadas, e assim ainda persiste já por mais de um ano. Não me refiro apenas às questões básicas dos cuidados sanitários de preservação da saúde e da vida, mas considero todos os fluxos relacionais, como os sociais, emocionais e econômicos que se integram mutuamente e refletem diretamente na organização e nos ambientes usados para o trabalho.
Reconhecer dificuldades
Reconhecer este contexto nos ajuda a entender melhor uma das grandes dificuldades vivenciadas atualmente pelas organizações: o trabalho cada vez mais remoto e fluído. Não que isso seja uma invenção da pandemia. Já tínhamos muitas organizações buscando meios de “paulatinamente” adaptar e aprimorar suas práticas nesta direção.
Contudo, até o momento, estes foram movimentos marginais ou experimentais, porque invariavelmente estavam apoiados no “locus”, ou seja, em um lugar físico, que, como vimos sobre o viés da sustentação da cultura organizacional, é mais que um escritório, loja ou espaço físico. Os locais do trabalho, até então, eram implicitamente reconhecidos como um “porto seguro”, onde a liderança da organização se apoiava e entendia ter a sensação de controle de seus liderados, de saber se as coisas estavam acontecendo dentro do esperado e, ainda, de disseminar seus estilos de liderança e reforçar os traços, ritos e práticas que se somam na constituição da cultura organizacional.
Pois bem, inquestionavelmente o cenário é outro. Seja por convicção ou conveniência, a mudança sobre os modelos e formas de organização do trabalho é inexorável. Por mais que tenhamos pela frente no pós-covid um momento de reacomodação, o presente não será como o passado e o futuro ainda será constituído.
No entanto, será muito mais pautado na virtualização e distanciamento físico das relações, um movimento que também deve abrir espaço para um novo fenômeno a ser observado, que é a perda de referências geográficas para constituição dos recursos humanos que comporão nossa força de trabalho.
Este será um fenômeno cada vez mais explorado pelas organizações, ainda que nacionais para buscar ampliar sua competitividade. Portanto, a tendência é que os espaços físicos para organização do trabalho tenham outro significado e mude o polo de relevância, ficando cada vez mais marginal ao que temos.
Consequentemente, estes espaços tendem diluir sua relevância como um dos elementos fundamentais, sobre o qual nos apoiávamos na construção e consolidação da cultura organizacional e outros espaços de inteirações virtuais e físicos, tendem a evoluir na constituição e manutenção da cultura organizacional.
Desafio organizacional
Neste sentido, precisamos reconhecer que o desafio está posto e, como lideranças e profissionais dentro das organizações, em especial nós, profissionais à frente das áreas de gestão de pessoas, temos um papel diferenciado em estimular e apoiar a transformação do “mind set” das nossas organizações.
Tudo isso em uma direção muito mais voltada para as pessoas – estejam elas onde estiverem – e muito menos nos espaços físicos de onde criamos estas referências. Vamos precisar encontrar novos elementos para a constituição e consolidação da cultura organizacional, que intensifica o relacionamento com nossos profissionais e, pelo visto, cada vez mais com as pessoas que circundam a vida destes profissionais.
Rapidamente precisamos assumir que, por natureza, não somos entes dissociados, somos pessoas indivisíveis, providas de emoções, sensações e experiências com manifestações, seja qual for o ambiente. Mesmo que, até então, tínhamos a falsa perspectiva de que a modelagem do trabalho com maiores separações físicas poderia artificialmente criar artifícios de separação entre o profissional e pessoal, hoje está claro que esta é uma dinâmica cada vez mais difícil de se sustentar.
Não somos fracionados e, portanto, a qualidade, os desafios e as oportunidades estão interrelacionadas entre a dinâmica profissional e a pessoal. Por isso, é muito importante um olhar atento à saúde e à qualidade de vida, uma vez que a dinâmica da vida precisa ser vista de forma integral, como algo que se retroalimenta de maneira cíclica.
Neste sentido, a pandemia descortinou muitas situações diante da necessidade de irmos para trás das telas 3×4 em nossas interações. As vidas ficaram mais transparentes e expostas, o que naturalmente permitiu que os momentos profissionais e pessoais ficassem ainda mais interligados, mostrando na verdade uma conexão já existente.
Ações pontuais
Atenta a isso, na Leão Alimentos e Bebidas procuramos reconhecer o contexto e ao invés de “brigar” contra ele, buscamos agir, revendo nossas governanças, nos colocando mais presentes junto aos nossos times. Ainda que fisicamente mais distantes, organizacionalmente ficamos ainda mais próximos. Estimulamos de diferentes formas as lideranças para que estivessem mais próximas de suas equipes, tanto no caso do trabalho remoto ou presencial como em nossas operações fabris e comerciais.
Conseguimos chegar aqui com mais de 20% das nossas posições trabalhando remotamente em 100% do tempo, revendo modelos de operações em nossas fábricas e times de campo na área comercial e, tudo isso, sem perder o contato e os traços da nossa cultura organizacional. Pelo contrário, para dar ainda mais sustentação a nossa cultura neste período, nos desafiamos a rever as competências organizacionais e os respectivos comportamentos observáveis, revisamos e implementamos novas ferramentas e dinâmicas de gestão de desempenho. Isso tudo foi feito a distância e já adaptado ao presente momento, mirando o hoje e ao mesmo tempo o futuro que estamos construindo.
Um futuro de mudanças
O novo nos desafia sempre, mas quando nos colocamos disponíveis para a mudança, temos uma vantagem que nos encoraja a seguir com menos pré-julgamentos. Nesse sentido, reconhecemos que as escolhas ficam mais simples, podemos resistir e seguir fazendo o mesmo da mesma forma, sabendo que cedo ou tarde vai dar errado ou buscaremos fazer diferente, construindo novas possibilidades e, com isso, aumentamos a possibilidade de romper paradigmas.
Bom, por aqui, em termos de “mind set”, o “desconforto” da distância física já nos ajudou muito a mudar a referência, e hoje acredito que ao reconhecer as mudanças, buscamos evoluir mais em vez de resistir. Arrisco afirmar que este já é um dos principais elementos de reconstituição da nossa cultura organizacional.