O tempo mostra que trabalho transforma a sociedade e que a sociedade também transforma o trabalho. Mas em que ritmo as corporações assimilam transformações sociais? Quais mudanças são mais palatáveis para as empresas, mais fáceis de implementar, e quais representam um desafio maior? A Melhor conversou com especialistas em RH e em tendências sobre qual é a responsabilidade dos departamentos de recursos humanos para que as empresas alcancem o presente, no que diz respeito não às inovações tecnológicas, mas às práticas corporativas e às relações de trabalho.
São muitos e complexos os desafios. Os hábitos urbanos contemporâneos e os valores das novas gerações estão sendo devidamente contemplados? Como RH de hoje lida com a equivalência salarial entre os diferentes sexos e etnias? Cônjuges de funcionários homossexuais têm os mesmos direitos oriundos de uma união tradicional? As relações de trabalho estão menos hierárquicas e mais colaborativas? Qual é o papel do RH no que diz respeito à sustentabilidade da empresa e à sua função social?
“Mudanças comportamentais levam gerações para se concretizar”, afirma o sociólogo Dario Caldas, fundador do Observatório de Sinais, consultoria de tendências pioneira no Brasil. “Devemos ter isso em mente, sobretudo no momento atual, em que o culto à mudança e à aceleração embasam todo tipo de raciocínio equivocado.” Caldas frisa que a empresa é o lugar do status quo. “Essa afirmação pode soar paradoxal, no momento em que o discurso mainstream é o da mudança, da inovação, da criatividade, do reinventar-se, de ter um propósito para além da simples atividade comercial.” Mas o lucro, ele garante, continua sendo o objetivo primordial.
Eline, da Stanton Chase International: estar atento às constantes transformações |
Contudo, Caldas reconhece que há empresas mais arrojadas. Ao mesmo tempo, argumenta que elas estão para o setor empresarial como as vanguardas artísticas e os intelectuais estão para a sociedade: são minoria, mas influenciam e formam opinião. Para Eline Kullock, que já foi diretora de RH na Mesbla e hoje é sócia da caça-talentos multinacional britânica Stanton Chase International, os novos tempos exigem a consciência de que a sociedade vive hoje em transformação constante. Eline é também especialista em comportamento de gerações.
Mas o que sinaliza contemporaneidade? Empresas como o gigante da internet Google se destacam nos noticiários por promover um ambiente de trabalho flexível e divertido. No ano passado, o escritório brasileiro desembarcou em São Paulo em um espaço de nove mil metros quadrados na Avenida Faria Lima. São quatro cozinhas decoradas com temas paulistanos, de livre acesso para os funcionários, que podem preparar seus próprios lanches ali mesmo e usufruir de cerveja, garrafinhas de leite fermentado e guloseimas grátis. Há também mesas de sinuca e videogames, além de um estúdio musical e um terraço com espreguiçadeiras.
Exotismo
O Google foi destaque nos meios de comunicação justamente por ser uma exceção, e uma exceção muito chamativa. O grupo pode representar uma vanguarda – mas ainda é visto como exotismo. De todo modo, há mais questões contemporâneas além de tornar o trabalho um lugar divertido. No escritório brasileiro, a média etária é de 30 anos, com um percentual masculino de 65%, o que é sintomático.
O último grande estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao ano de 2012, mostrou um retrocesso no processo de equiparação salarial entre homens e mulheres. Em 2011, elas recebiam o equivalente a 73,9% do salário deles, média que caiu para 72,9%. Para o IBGE, o recuo se deve ao fato de que a renda das mulheres subiu menos do que a dos homens – 5,8%, contra 6,3%.
Os dados são oriundos da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílios (Pnad), que traça um panorama da situação da sociedade em diversas áreas, como trabalho, educação, saúde e rendimento. A edição de 2012, divulgada no segundo semestre de 2013, ouviu 362.452 pessoas em todos os estados do país.
“Na prática, o que se percebe é que a diferença salarial entre homens e mulheres praticamente não existe no início da carreira, mas ainda é comum nos cargos mais altos”, pondera Fernando Montero Capella, diretor da consultoria Capella RH. As funções operacionais tendem a ser mais igualitárias, ao passo que homens continuam faturando mais nos cargos de chefia. “Nesses cargos, a diferença chega facilmente a 20%, 30%.”
Cogita-se que uma razão para o aumento da desigualdade de renda entre gêneros seja o fato de a presença feminina ter aumentado no setor de serviços (de 59,5% em 2011 para 60,2% em 2012), um ramo que historicamente paga salários mais baixos. Faz sentido, já que a taxa de desemprego entre mulheres recuou de 9,1% para 8,2% no mesmo período.
“O tema voltou às manchetes com força total, sobretudo nos Estados Unidos, onde a tendência ficou estagnada – isto é, a diferença entre os salários de homens e mulheres parou de diminuir”, afirma Dario Caldas. Há hipóteses para justificar a situação. Para alguns, as mulheres estariam se contentando com postos de remuneração mais baixa, para conseguir equilibrar trabalho, família e filhos.
Outra vertente, mais criticada, pode ser exemplificada pelo best-seller Faça acontecer (Companhia das Letras), recém-publicado pela vice-presidente do Yahoo, Sheryl Sandberg. Para ela, as mulheres têm parte da culpa e precisam ser mais ambiciosas e proativas no mercado de trabalho. Na Europa, essa teoria não cola. Especificamente na Espanha, a disparidade é punida por lei – mas a recente crise econômica estancou os avanços, por ora.
Para Eline Kullock, a modernização dos valores e das práticas das corporações é só uma questão de tempo – e não muito tempo. “Hoje, há mais mulheres do que homens nas universidades”, diz. Mas ela vê mesmo uma relação entre os salários mais baixos e a dupla jornada feminina. “As demandas por jornadas longas e viagens também são um preço a pagar, especialmente em cidades com tanto trânsito quanto São Paulo e Rio.” Eline afirma que muitas mulheres recusam mesmo esse pacote, em especial quando têm filhos pequenos.
Peneira racial
Outra ‘minoria’ afetada por disparidades no mercado de trabalho no Brasil é a população negra. A edição anterior do Pnad, referente a 2011, apontou um grande salto no ingresso de jovens negros nas universidades no correr de uma década: 35,8% dos jovens negros e pardos entre 18 e 24 anos que estudavam no Brasil em 2011 estavam em faculdades – o que representa um aumento de 350% em relação aos 10,2% de 2001.
Para Fernando Montero Capella, o problema mais grave é a absorção desse público pelo mercado de trabalho. “Uma vez que conseguem ingressar nas empresas, negros brasileiros têm uma trajetória semelhante à dos brancos”, diz. “O mais difícil é ultrapassar essa barreira inicial.” E ele destaca que o preconceito contra negros não se reproduz em outras etnias não brancas. “Descendentes de asiáticos não passam por esse problema no Brasil.” Ainda não há estudos sobre como são tratados os novos imigrantes, vindos do Peru e da Bolívia, entre outros.
Passadori, do Instituto Passadori: políticas transparentes tendem a minimizar privilégios |
De todo modo, Dario Caldas acredita que a situação dos negros no mercado de trabalho é hoje mais desconfortável que a dos gays. “Faltava uma estrutura legal, no nível social, que legitimasse essa igualdade – não falta mais”, diz. Capella confirma essa impressão e diz que, em todas as empresas que sua consultoria atende, cônjuges homossexuais contam com os mesmos direitos de cônjuges heterossexuais desde que a união civil entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida no Brasil via Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011.
“Se pensarmos que o movimento gay eclodiu nos anos 1960 e que foram necessários 50 anos para chegarmos à situação atual, podemos entender como essas evoluções são lentas”, pondera Caldas. Com a inclusão legal, entretanto, esse processo se acelera e não são mais necessários outros 50 anos para que a equiparação se torne a regra no mercado de trabalho.
“A valorização das pessoas pelo que são capazes de entregar, com base em sua formação, dedicação e comprometimento, já acontece”, afirma o consultor Reinaldo Passadori, especialista em RH e presidente do Instituto Passadori. “As políticas internas, cada vez mais transparentes e mais discutidas, também tendem a minimizar privilégios e seleções de pessoas por critérios subjetivos.”
Eline Kullock afirma que as transformações em geral ocorrem hoje com mais rapidez porque a Geração Y sofreu influência direta da internet – outras gerações tiveram uma infância analógica e uma maturidade digital. Múltiplas informações geram múltiplas escolhas, o que, por sua vez, requer velocidade de decisão. As relações são mais fluidas, fugazes ou “líquidas”, como na célebre definição do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (Modernidade líquida, Editora Zahar). Tudo se transforma e nada permanece.
Presentismo
A especialista ressalta que, no Brasil, a Geração Y foi ainda beneficiada por um momento econômico de relativa estabilidade, sem hiperinflação. O país também é predominantemente jovem (47% da população tem até 25 anos) – no Japão, são 25%. “Há um estímulo muito grande para viver o momento, o que podemos chamar de ‘presentismo’.” Tudo isso favorece mudanças.
Outro ponto levantado pela última Pnad está diretamente relacionado a uma tendência contemporânea (ou à necessidade de que ela seja de fato implementada em larga escala), o home office: piorou o tempo de deslocamento nas regiões metropolitanas do país entre 1992 e 2012 em 12%. O tempo médio subiu de 36,4 minutos para 40,8 minutos. E as cidades com maiores aumentos não foram São Paulo e Rio, mas Belém e Salvador.
“A questão do teletrabalho se coloca desde os anos 1980 e, tendencialmente, pode-se afirmar que sim, há cada vez mais gente trabalhando em casa ou a distância, de modos variados”, afirma Dario Caldas. Mas isso ocorre em nichos. Esse perfil de trabalhador ainda está muito ligado à ascensão dos serviços como atividade principal no capitalismo pós-industrial, e, mais recentemente, às profissões da chamada economia criativa. “Não se pode afirmar que isso já se verifique entre a maioria das empresas ou dos trabalhadores, longe disso.”
#L# Uma postura recente do Yahoo é emblemática. Após anos de flexibilidade, a empresa voltou a exigir horários e presença no escritório, por concluir que os esquemas de home office estavam sendo contraproducentes para a companhia. “Em um momento de competição cada vez mais acirrada, em todos os níveis, agravado por um quadro de crise econômica, as práticas empresariais tendem a ser mais conservadoras, a despeito de todo o discurso em contrário”, explica Caldas.
Em casa ou no escritório, as relações de trabalho estão ao menos mais horizontais? Eline Kullock acredita que a chamada Geração Y deve firmar essa tendência. “É uma ideologia colaboracionista, menos hierarquizada, bastante avessa a estruturas muito verticalizadas”, diz. “Mas não há nada de revolucionário na adoção de práticas mais colaborativas – apenas o bom senso e a lógica dizendo que assim se produzirá mais e melhor, daqui por diante.”
Para Caldas, o caso recente do grupo Inbev é exemplar (ou antiexemplar, de acordo com a perspectiva). “Quando compram uma nova empresa ou marca, os dirigentes cortam postos, espremem espaços, colocam diretores ao lado de funcionários de patente menor para trabalhar juntos”, ilustra. Esse tipo de estímulo a um estreitamento de relações entre os funcionários estaria muito distante dos preceitos da ‘inovação social’, que os entusiastas das formas de colaboracionismo contemporâneo gostam de propagar.
Mais otimista, Eline prevê muitas mudanças e num futuro muito próximo. Além da flexibilização do expediente, do local e das relações de trabalho, e da equiparação de salários e direitos entre funcionários de diferentes gêneros, orientações sexuais e etnias, outras pequenas grandes coisas podem se transformar, como o uso de terno e gravata, por exemplo. “O traje não é prático para o país quente em que vivemos, nem para as demandas de transporte por que passa o brasileiro”, diz.
Com maior ou menor otimismo, os especialistas acreditam que mudanças estão em processo e os departamentos de RH têm responsabilidade nisso. “Acredito que seja preciso investir em treinamentos que oxigenem as ideias e as visões de mundo”, ressalta Dario Caldas. Com um treinamento de pessoal que propague valores contemporâneos, a mudança não precisa ocorrer apenas de cima para baixo, a partir de decisões da diretoria. Pode se tornar um desdobramento mais natural do desenvolvimento da sociedade.