Há uma certa opacidade no exercício da liderança. Em suas mil e uma caracterizações, é treinada para conviver com o status quo |
Nosso silêncio tem limites quando achamos que algo pode estar errado? Às vezes, nenhuma relação entre nós e o “mal feito”; em outras, sentimo-nos distantes e impotentes, mesmo reconhecendo o delito; mas há também aquelas em que o cheiro de fumaça está forte e suspendemos a respiração até passar. Difícil assumir um único julgamento moral quando tantas variáveis influenciam o comportamento humano. O que não quer dizer que as infrações contra as convenções sociais sejam justificáveis, desde um cigarro jogado no chão até o desvio de dinheiro de uma empresa.
Após tantos escândalos envolvendo empresas públicas e privadas, aqui e alhures, o que pode estar passando pela cabeça do funcionário que sempre pensou estar no melhor dos mundos? De início, uma natural perda de autoestima. Em seguida, a condenação, com variados roteiros de via-sacra, de um certo número de transviados (quantos?) que atravessaram incólumes os sistemas de mérito até serem flagrados com a chave do cofre. Além disso, o rancor contra os do ambiente externo. De qualquer forma, a corporação deve ser protegida, pois os justos não podem pagar pelos pecadores, mesmo que o pecado more ao lado. Logo o Fernandinho? Quem diria, tive tantas reuniões com ele…
Recolher-se ao silêncio é até compreensível, cada um se perguntando como isso pôde acontecer e o quão próxima essa caravana passou. Antes de o sol voltar a brilhar, no entanto, é preciso aprender com a experiência, mesmo que isso seja doloroso.
Efeitos burocráticos
O comum dos mortais descobre-se entre suas próprias crenças e competências, o voluntarismo do predador e as condições e situações que facilitam a desenvoltura do contraventor. Será que está dormindo com o inimigo?
É claro que as soluções estruturais, tipo reimpressão dos códigos (que já existiam) ou criação de mais comitês/diretorias, sempre são anunciadas, com efeitos mais burocráticos que saneadores. Isso não vai acalmar a alma tresnoitada do infeliz “colaborador”.
O que está em crise é a certeza de relações. Uma pesquisa CPDEC/Unicamp mostrou que “a grande maioria dos entrevistados (90%) diz que não reportaria condutas antiéticas por medo de retaliação, receio de que sua denúncia não seria mantida anônima e crença de que nenhuma ação corretiva seria tomada”, conforme publicou o jornal Valor Econômico, no dia 11 de abril deste ano. Vale lembrar o que Richard Sennett chamou de “jaula de ouro”, onde se negocia a liberdade em troca de benefícios futuros. Cada um com seus cuidados e motivos, mas é assim que se constrói um ambiente de leniência que acaba se espalhando por todo o organismo, em metástase. Ninguém é pago para ser herói, é verdade. Nem para ser vítima das circunstâncias.
Desconexão
As organizações vivem seus paradoxos. Quando Greg Smith, alto executivo do Goldman Sachs, pediu demissão por meio de carta pública ao The New York Times, em 2012, disparou que o “ambiente é tóxico e destrutivo como nunca vi”. Em resposta, o banco assegurou que era uma das cem melhores empresas para trabalhar (segundo relação divulgada pela revista Fortune) e a terceira como empresa dos sonhos em MBA. Fossem quais fossem as motivações, a polêmica gerou um interessante comentário da HR Magazine: “fatores qualitativos, incluindo sistemas de capital humano, como cultura e liderança, são mais apropriados para expor a desconexão entre retórica e realidade”.
Nenhum sistema é perfeito, mas quantos processos mal desenhados facilitam desvios de caminho? Planejamentos precariamente elaborados levam à construção de atalhos ziguezagueantes no curso da implementação. Fértil campo para adaptações convenientes.
Assim como a inconsistência do planejamento, a fragilidade dos controles. Não é difícil para uma auditoria encontrar vulnerabilidades nos mecanismos de controle. Aliás, é também para isso que elas existem. Quando o sistema prefere o processo pelo processo, torna-se autofágico. Volta aqui aquele terrível hábito de fazer certo o errado, sem sequer considerar se aquilo deve ser feito. Há uma foto esclarecedora (e estarrecedora) mostrando uma ponte pronta para uso, apesar de não existir estrada antes e depois. Basta seguir o processo, acriticamente. A ponte está lá, solitária no meio do nada. Certamente, os processos foram obedecidos, com relatório final e tudo o mais. E o pior: nosso silente colaborador pode ter trabalhado nele e, quem sabe, ter sido premiado com um simpático bônus.
O que está em questão, nesse caso, são as competências de gestão. Empresas chegam ao sucesso pela aplicação de competências que as tornam vencedoras, mas a arrogância do “somos os melhores” pode levá-las à entropia quando subestimam o surgimento de novos fatores críticos. O autoritarismo da arrogância acha que seu poder é absoluto, acima do bem e do mal.
Integridade
Há igualmente uma certa opacidade no exercício da liderança. Em tais ambientes, em suas mil e uma caracterizações, é treinada a peso de ouro para conviver com o status quo, numa linha em que a preservação pode superar a transformação. Consciente ou inconscientemente, acabam por repassar um clima de conformismo a suas equipes e de subserviência a seus superiores. Sua principal missão parece ser assegurar que todos sobrevivam bem. Boas razões para reger uma ópera de silêncio.
O inocente acaba sendo tragado por tantas crises que certamente seriam menores ou mais bem administradas se participasse de uma cultura de integridade, onde se faz (e se entrega) o que se prega. Seu oposto é a cultura de permissividade, das ressalvas consentidas, das agendas ocultas, de um pífio sistema de consequências, de baixos decibéis.
Ninguém precisa entrar em depressão por viver em ambientes conturbados. Tampouco sentir-se observador neutro, privilegiado.
Não se trata de mera pregação moral, mas de ética da sobrevivência. Quando a discussão sobre propósitos enche auditórios, constatamos que estamos muito carentes deles, pessoal e institucionalmente. Silente e inocente pode ser uma boa rima, nem sempre a solução.
Luiz Augusto M. da Costa Leite é sócio-diretor da Change Consultoria