Especial Dia das Mães

Papéis do passado

de Jacqueline Sobral em 5 de março de 2013

ESPECIAL MULHER | Entrevista com Mary Del Priore | Edição 304

A visibilidade das mulheres sempre foi muito precária, diz historiadora

Mary Del Priore: “acabamos nos transformando em um ‘produto’ de que o mercado de trabalho precisa”

Falta, ainda, no Brasil, memória histórica. A afirmação é da historiadora e autora de diversos livros, entre eles História das mulheres no Brasil (Editora Contexto), Mary Del Priore. Prestes a lançar mais uma obra, Conversas e histórias de mulher, pela Editora Planeta, Mary lembra que já no século 17 a mulher ia à luta, trabalhava e, ao mesmo tempo, cuidava dos filhos. “No final do século 18 já havia registro de avós exercendo o papel [de criar os netos] nos lares onde, na ausência de uma figura paterna, a mulher era a única responsável pela família. Ou seja, o que estamos presenciando são papéis já exercidos no passado, mas com novos contornos”, diz.

MELHOR – Vou repetir uma pergunta que está no início do livro História das Mulheres no Brasil: qual foi, qual é e qual poderá ser o lugar das mulheres?
Mary – O lugar das mulheres sempre foi muito nítido, mas a visibilidade dele é que sempre foi muito precária, basta lembrarmos que durante muito tempo foram os homens os responsáveis por contar as histórias sobre elas, e eles, claro, nunca quiseram exaltá-las. Vejo hoje sociólogos espantados com o fato de o sexo feminino ir à luta, trabalhar e, ao mesmo tempo cuidar dos filhos. Mas isso já era uma realidade no século 17. Se você olhar para trás, a mulher sempre fez tudo. Existe aqui no Brasil também um fenômeno demográfico que é muito esquecido: há muito mais mulheres do que homens; não é à toa que elas estão ocupando todos os espaços. A partir dos anos 70 e 80 do século 20, houve uma migração forte do campo para a cidade e um desenvolvimento econômico no Brasil que permitiu às mulheres ocuparem diversos espaços, como, por exemplo, as universidades, onde até então só existiam homens como professores.

Foi somente no final do século 17 e início do século 18 que as meninas puderam começar a frequentar as escolas, a exemplo do que já ocorria com os meninos. Pesquisas mostram, no entanto, que as mulheres, hoje, estão mais escolarizadas do que os homens. Estamos mais preparadas do que eles para o mercado de trabalho? É por isso que as empresas estão cada vez mais buscando formas de reter o talento feminino?
Acabamos nos transformando em um “produto” de que o mercado de trabalho precisa. A mulher hoje está nas universidades, faz pós-graduação, fala outras línguas. A instituição da flexibilização de horários nas empresas vai se tornar obrigatória, e os EUA foram pioneiros nisso. Essa exigência de ser multitarefa acaba sendo mais uma imposição individual da mulher do que exatamente uma pressão da sociedade. Não podemos esquecer que existe uma tensão entre as mulheres muito grande, pois somos altamente competitivas.

E a mulher está feliz com essa busca constante de equilíbrio entre o pessoal e o profissional?
Se elas estão felizes, essa é uma resposta muito individual. O que existe hoje é a possibilidade de a mulher não querer mais fazer família, de não querer mais casar e ter filhos. Nos países desenvolvidos, isso já vem ocorrendo com frequência. Na Alemanha, por exemplo, mais da metade da população vive sozinha e esse comportamento deve aumentar no Brasil. As mulheres de hoje, com 30 anos, estão lidando muito bem com isso, muitas decidem adiar seus planos de maternidade, pois querem desenvolver primeiro suas carreiras. São opções que se apresentam e não dá para ter juízo de valor, não são melhores ou piores que o modelo tradicional. A mulher pode recorrer à inseminação artificial, não precisa mais do homem para ter um filho, graças aos avanços da tecnologia, e pode até contratar uma barriga de aluguel, se não quiser vivenciar no próprio corpo a experiência da gravidez. Ela também não precisa se casar, da mesma forma que pode prolongar seu tempo no trabalho, mesmo depois de se aposentar. Outra transformação a que assistimos hoje é em relação à presença dos avós nesse contexto, assumindo muitas vezes a criação dos netos, enquanto suas filhas estão no trabalho. De novo, o que falta no Brasil é memória histórica: no final do século 18 já havia registro de avós exercendo esse papel nos lares onde, na ausência de uma figura paterna, a mulher era a única responsável pela família. Ou seja, o que estamos presenciando são papeis já exercidos no passado, mas com novos contornos.

Diversas empresas atualmente desenvolvem ações voltadas exclusivamente para o público feminino, enquanto já se discute até a criação de cotas para elas em conselhos administrativos de empresas. As mulheres realmente precisam de toda essa atenção?
Um dia não precisaremos mais, não estaremos discutindo “homens e mulheres”. No entanto, o Brasil ainda está se organizando nesse sentido e ainda vamos falar sobre essas diferenças durante um tempo. Os papéis femininos e masculinos estão se reorganizando, estamos passando por grandes transformações, então acho que o debate é válido. O ideal vai ser quando pararmos de falar em gêneros e passarmos a falar apenas de seres humanos e seus projetos.

A senhora citou em uma entrevista que existe hoje uma “tirania da perfeição física” e que as mulheres que se submetem a ela estão em busca não de uma identidade, mas de uma identificação com o que é disseminado pela mídia. Essa é uma questão preocupante?
Acho que essa é uma questão muito ligada a um problema de educação no Brasil. A mulher que possui um determinado nível de escolarização é autônoma, consegue fazer escolhas em relação ao seu trabalho, à sua sexualidade, ao seu corpo. Ou seja, exerce a sua liberdade individual. Quanto mais você desce na pirâmide social, porém, menor é o esclarecimento e maior é a necessidade de imitação, que se torna permanente. Em uma sociedade sem educação, é o modelo da “periguete” que será seguido. Uma mulher que não anda com as próprias pernas, só consegue se sentir realizada pelo olhar do homem, e se ela se fizer “comestível”. É por isso, inclusive, que costumo dizer que as mulheres com baixo nível de escolarização são mais machistas que os homens. São elas que adotam o discurso de “homem não faz a cama”, “homem não lava a louça”, “homem gosta de mulher fruta”. Infelizmente, querer ser um “animal de companhia” ainda é um projeto de muitas mulheres com baixo índice de educação, que acabam se submetendo à violência doméstica.

 

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