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Questões legais e compliance na declaração étnica

Especialista comenta a contratação de temporários e a constitucionalidade da lei que estabelece a identificação do segmento étnico e racial nos documentos dos trabalhadores

de Rosana Pilon Muknicka em 14 de novembro de 2023
iStockPhoto



Diante do mês das crianças, Black Friday e a chegada das festas de final de ano, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) estima que o comércio abrirá 110 mil vagas para trabalhadores temporários em 2023.

Um trabalho árduo para as empresas fornecedoras de mão de obra temporária que, além do recrutamento e seleção, precisarão observar todo um arcabouço jurídico complexo, com a inclusão de normas como a LGPD e o Estatuto da Igualdade Racial.

No dia 24 de abril de 2023, foi publicada a Lei 14.553/23, que contemplou novas regras no Estatuto da Igualdade Racial e determinou a inclusão nos registros dos empregados, tanto do setor público quanto privado, da identificação do segmento étnico e racial a que pertencem.

A obrigatoriedade da inclusão de referidas informações se inicia com o formulário de admissão no emprego, documentos da previdência social, da RAIS, do SINE, formulários de acidente do trabalho, concluindo com os de rompimento do vínculo empregatício.
A primeira questão residiria na própria definição do que seria “segmento étnico e racial”. Referida norma não entrou nesta difícil resposta e se limitou a informar que será utilizado o “critério de autoclassificação em grupos previamente delimitados”.

Um segundo questionamento que surge sobre esta norma é a observância ou não da LGPD. Afinal, a LGPD exige uma finalidade clara para a obtenção de dados sensíveis. A Lei 14.553/23 menciona que o IBGE realizará, a cada 5 (cinco) anos, pesquisa destinada a identificar o percentual de ocupação por parte de segmentos étnicos e raciais no âmbito do setor público, a fim de obter subsídios direcionados à implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, mas não deixa claro se esta seria ou não a finalidade da coleta dos dados sensíveis ou se estes seriam também utilizados para outras finalidades.

Neste sentido, deveremos questionar se as fornecedoras de mão de obra temporária e os órgãos que terão acesso a referidos dados sensíveis estão em compliance com a LGPD o que implica, dentre outros, a observância dos seus princípios, dentre os quais destacamos, além da finalidade, da transparência e da segurança dos dados.  
Não estando em compliance com a LGPD, a fornecedora de mão de obra temporária e o órgão público não poderá, sequer, realizar o tratamento de referidos dados sensíveis.

Vale recordar, ainda, que questões relacionadas ao segmento étnico e racial se encontram dentre os dados considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados, que merecem toda uma proteção especial por parte de quem realiza o seu tratamento, sendo que a proteção de dados pessoais ganhou status de direito fundamental com a Emenda Constitucional 115, de 10 de fevereiro de 2022.

Observe-se, no mais, que a norma não apresentou qualquer sanção pelo seu descumprimento e não indicou, por exemplo, quais as medidas a serem adotadas no caso de erro na anotação ou da possibilidade de mudança da autodefinição do segmento ético e racial pelo trabalhador. Não há, ainda, qualquer indicação acerca da responsabilidade do empregador pela exatidão das informações. Neste sentido, poderá o empregador contestar a autoclassificação feita pelo seu empregado? Ou, ainda, poderá o empregado se recusar a se autodeclarar como pertencente a determinado segmento étnico e racial? Qual seria a sanção cominada para quem se recusar a se autodeclarar em um segmento étnico e racial?

No Brasil, há uma banalização acerca da disponibilização de dados sensíveis não observada em países com maior nível de segurança em relação à proteção de dados pessoais.

Contudo, neste sentido, há um precedente histórico no Brasil suspendendo a eficácia de Medida Provisória (MP 954/2020), que previa o compartilhamento de dados pessoais dos usuários de telecomunicações com o IBGE para a produção estatística oficial durante a pandemia do COVID 19 (ADIs 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393).

Nesta importante decisão, ficou clara e inequívoca a adoção do preceito de autodeterminação informativa, ou seja, na faculdade de o indivíduo determinar e controlar a utilização de seus dados.

Este tema foi amplamente debatido na Suprema Corte brasileira que citou em sua decisão o paradigmático Volkszählungsurteil (BVerfGE 65, 1), de 1983, no qual o Tribunal alemão declarou a inconstitucionalidade da chamada Lei do Censo alemã (Volkszählunsgesetz), que possibilitava que o Estado realizasse o cruzamento de informações sobre os cidadãos para mensuração estatística da distribuição espacial e geográfica da população. Nesse julgado, o Tribunal alemão reconheceu a existência de um direito constitucional de personalidade que teria como objeto de proteção o poder do indivíduo de decidir sobre a divulgação e o uso dos seus dados pessoais.

Portanto, em um cenário com mais de 110 mil novas contratações, a inclusão de referidos dados sensíveis para finalidades genéricas deveria ser melhor discutida antes da sua implementação para que, ao invés dos efeitos benéficos de uma maior inclusão não seja gerada, em verdade, maior discriminação étnica e dificuldades adicionais para quem necessita de maior suporte e apoio.

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Rosana Pilon Muknicka

Sócia do escritório Muknicka Advogados.