Há dois anos, o vice-presidente de talentos humanos do Grupo Algar, Cícero Penha, recebeu uma informação inusitada sobre um dos funcionários da empresa. Por alertas internos, a direção fora comunicada de que havia entre eles um traficante de drogas. Após a constatação da denúncia, a ação da companhia foi imediata: demissão sumária. O colaborador em questão, do qual Penha preserva a identidade por questões éticas, foi encaminhado à polícia para responder criminalmente pelos atos dele. Tal funcionário chegou, até, a usar o ambiente de trabalho para comercializar drogas. “Utilizava, inclusive, o telefone da empresa para fazer os negócios dele”, conta Penha. O caso relatado pelo executivo pode não ser tão incomum no ambiente de trabalho. Porém, dada a aura de tabu que ronda o tema (drogas no mundo corporativo), situações como essa parecem poucas e, se são descobertas, ficam “encobertas”. Na verdade, esse silêncio implica um círculo vicioso, se permitem o adjetivo. A ausência de programas, nas empresas, que lidem abertamente com a questão da dependência química pode reforçar o preconceito e agravar, ainda mais, a já tão complicada vida de quem se vê preso no álcool, cocaína, maconha e tantas outras substâncias.
Por sorte, algumas companhias vêm quebrando esse círculo e passam a colocar o tema como foco de políticas que visam a qualidade de vida. Cuidar o funcionário dependente químico vai além de uma ação socialmente responsável da empresa. Em alguns casos, é uma forma de não perder um talento, evitar que outros sigam o mesmo caminho e, assim, cuidar da produtividade. Que o exemplo de cada uma dessas companhias possa, de maneira análoga, mas para o bem, contaminar e viciar outras a adotarem a mesma postura.
Programa abrangente
Dados do Relatório Anual 2010 do Escritório das Nações Unidas de Combate a Drogas e Crime (UNODC) indicam que aproximadamente 250 milhões de pessoas, em todo o mundo, consumiram drogas ilícitas em 2009. Dessas, 38 milhões eram dependentes – ou seja, quase ninguém está livre de conviver com essa mazela. “Há duas situações quando falamos sobre drogas: usuários e traficantes”, pontua Penha. “O primeiro é uma responsabilidade nossa. Devemos procurar tratamento para a doença da pessoa. Mas o traficante, não. É caso de polícia”, enfatiza.
Com esse pensamento, a Algar criou, há nove anos, o Plano de Desenvolvimento Individualizado da Saúde (PDI), programa oferecido a um grupo de colaboradores para ensinar as melhores formas de gerenciar a saúde física e emocional. “É um projeto abrangente para lidar com as mais diversas situações [ tratamento a dependentes químicos, inclusive ]”, acrescenta Penha. Este ano, a meta da área de talentos humanos é ampliar o PDI. O grupo pretende, até dezembro de 2011, levar o benefício a todos os seus 17 mil funcionários.
No caso específico do combate à droga, lícita ou ilícita, Penha destaca alguns níveis de análise praticados pela companhia para dirimir a incidência de pessoas com propensão ao seu uso, independentemente dos programas de qualidade de vida desenvolvidos. O primeiro nível de análise ocorre no ato da admissão, durante a entrevista, mas não com perguntas diretas sobre consumo, mas sobre aspectos que revelem os hábitos de vida do postulante à vaga. É uma tentativa de identificar traços na personalidade do candidato que indiquem uma tendência ao vício. “Ninguém responde positivamente, em situações de contratação, ser usuário de drogas.”
Após a contratação, entra em cena a segunda forma de análise: a observação constante do comportamento do colaborador, principalmente, pelo gestor direto. Se for identificada alteração de humor frequente, irritabilidade, sonolência, baixa produtividade, entre outras características comuns a dependentes químicos, a pessoa deve ser encaminhada ao serviço médico – que, na Algar, conta com psicólogo e psiquiatra.
Penha conta que são poucos os casos de usuários de droga no grupo. “Algo em torno de 0,01%. Mas, de qualquer maneira, eles existem e precisamos ajudá-los a se recuperar. A empresa tem coragem de abordar esse assunto”, garante. O executivo ressalta, ainda, ser fundamental para todo esse processo a discrição e as campanhas de esclarecimento sobre o tema. “Poucas pessoas buscam o processo de reabilitação para evitar o surgimento de estigmas contra elas”, observa. Por essa razão, o interessado em se livrar do consumo de qualquer substância química não precisa nem falar com a gerência dele sobre o caso. “Ele pode procurar o serviço de saúde diretamente”, explica Penha. Essa precaução é adotada, diz o executivo, porque quando a questão do tratamento é sobre drogas, os colegas de trabalho não estão preparados para lidar com isso. “E nosso desafio é conseguir ajudar as pessoas.”
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Gatilho para o vício
De acordo com relatos médicos, o usuário abusivo de substância entorpecente (lícitas ou ilícitas) apresenta doenças psiquiátricas prévias não diagnosticadas, não tratadas ou mal tratadas. Daí a droga ser utilizada, em alguns casos, como uma espécie de medicamento para aplacar determinadas patologias. Por exemplo: a ansiedade pode ser encoberta, momentaneamente, pelo uso da maconha ou do álcool; ou a cocaína pode causar a impressão de um estado de alerta.
Assim como essas substâncias não são o remédio para esses males, um dos maiores erros no tratamento de dependência química é abordar apenas a dependência do paciente. É o que afirma o psiquiatra Carlos Henrique Rodrigues dos Santos. Segundo ele, fatores genéticos, por exemplo, são determinantes. “A doença faz com que as pessoas procurem trabalhos mais estressantes; e eles funcionam como gatilho [ para o uso da droga ].
É um círculo vicioso.”
E o estresse é fator fundamental ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas. Por isso, na avaliação de Santos, os maiores sucessos em tratamentos de dependência química acontecem quando são tratados outros transtornos psiquiátricos. “O paciente para de fazer uso da droga por ela deixar de ter sentido”, diz. Uma exceção, contudo, são os dependentes chamados de “pacientes puros”, aqueles sem nenhuma outra patologia psiquiátrica associada ao uso da droga, como transtorno bipolar, alimentar ou depressão. “A recuperação deles é mais difícil. De 70% a 80% apresentam recaídas”, explica o psiquiatra.
Estar preparado para lidar com essas situações é decisivo às empresas no auxílio à recuperação de seus colaboradores. Entretanto, Santos pondera que no Brasil as organizações ainda estão muito aquém no tratamento oferecido às pessoas tanto em relação à dependência química quanto aos transtornos psiquiátricos. “A dependência química nem é vista como doença psiquiátrica pelo leigo.”
Além disso, há ainda um agravante: o preconceito mantém-se disseminado, principalmente, entre os colegas de trabalho. Santos recorda-se de situações em companhias em que trabalhou, nas quais quem procurava ajuda médica para combater tais síndromes era visto de forma pejorativa. “Aquele lá faz tratamento no grupo tal “; “Esse daí está vindo de lá “; “Vou ter de assumi-lo em algum lugar aqui”. Esses são exemplos de frases ditas por funcionários que comprovam o preconceito. “E ainda existem os que acreditam que quem faz tratamento psiquiátrico é louco”, conta o psiquiatra. “Daí ser decisiva a política da empresa na recuperação desse colaborador doente. Tratar o assunto com a maior confidencialidade possível e desenvolver programas de acompanhamento constante para compreensão e explicação das melhores maneiras de solucionar o problema.”
A importância de adotar um trabalho eficaz de recuperação pode ser exemplificada entre adictos em cocaína, com transtorno de humor. Essas pessoas não podem trabalhar em turnos alternados porque a condição de usar a droga vai piorar. “É preciso ter rotina de sono e vigília. É preciso descanso. Do contrário, a doença fica totalmente desestabilizada”, enfatiza Santos.
Acompanhamento contínuo
Uma das empresas brasileiras pioneiras no combate à dependência química, a Embraer mantém, desde 1984, programa de prevenção e recuperação aos seus colaboradores, extensivo aos seus dependentes diretos. Batizado de Estar Bem Sem Drogas , o projeto age em duas frentes: ambulatorial e internação.
No primeiro caso, a empresa mantém uma rede de clínicas e entidades credenciadas para conduzir as reuniões de acompanhamento dos doentes. Uma vez por semana, há encontros nesses locais para trabalhos em grupo e individuais. Profissionais especializados acompanham o tratamento. Quando o caso é de internação, não há ônus financeiro para o funcionário. Os 15 primeiros dias são cobertos pelo plano de saúde. O tempo restante, de 30 a 45 dias, é custeado integralmente pela Embraer.”Desde o início desse trabalho, entendemos a dependência como doença”, reforça a coordenadora do programa contra a dependência química da companhia, Tatiana Oliva. Segundo ela, a ação é considerada, internamente, como uma “política viva”. “Ao percebermos a possibilidade de aprimorarmos os trabalhos, mudamos a forma de ação”, explica.
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Este ano, por exemplo, será realizada uma grande campanha informativa de combate às drogas. Além de material interno exposto, palestras e afins, a empresa vai enviar panfletos aos familiares dos colaboradores, reforçando o canal direto para a busca de ajuda em caso de necessidade. Integrar a família no processo do tratamento dos colaboradores é fundamental ao programa. Na Embraer, muitos dos contemplados foram beneficiados pela iniciativa dos familiares. “Mães, esposas e filhos nos ligam relatando o problema vivido. Pedem nossa ajuda”, contra Tatiana. Apesar de não revelar os custos envolvidos para promoção do trabalho, ela é enfática: “As ações não são caras quando comparadas aos benefícios atingidos”. Na companhia há funcionários participantes das atividades de recuperação há 11 anos. “A doença não tem cura. É preciso ter em mente que [ o acompanhamento para se manter longe do uso ] é para o resto da vida”, atesta.
Passar no teste
Outro fator relevante quando o tema é dependência química refere-se ao aspecto jurídico. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) remonta à década de 1940. À época, e por várias décadas seguintes, era possível demitir, por justa causa, funcionários alcoólatras. “Por muito tempo, portadores dessa doença acabaram penalizados”, comenta Patrícia Medeiros Barboza, advogada trabalhista do Escritório Campos Mello Advogados. A jurisprudência mudou e a alegação de justa causa, no ato da demissão, pelo fato de a pessoa ser alcoólatra, não se sustenta mais. “O direito adapta-se ao desenvolvimento da sociedade e à quebra de preconceito em relação a determinadas doenças”, conta a advogada.
Além das mudanças sociais, com implicações na modificação da lei, Patrícia lembra a responsabilidade das empresas pelos atos de seus empregados no horário de trabalho. “Um motorista de caminhão bêbado, que causa um acidente e mata uma família, pode gerar uma conta gigante [ em indenização ].” Mas não é só isso que deve motivar as organizações a lutar contra as drogas. Há, também, a responsabilidade social. “A companhia serve como um braço que apoia o empregado em situação de dificuldade. O emprego é um pilar muito forte na vida das pessoas”, diz Patrícia. Somando-se a esses fatores, na visão da advogada, as empresas compreendem, cada vez mais, o uso abusivo do álcool e droga como questão de saúde pública.
Na imbricada relação, no mundo corporativo, que envolve a responsabilidade dos atos dos funcionários, os limites da individualidade das pessoas e formas de abordar a questão das drogas, algumas ferramentas são criadas para a identificação de usuários de substâncias que podem alterar a consciência, trazer danos materiais a terceiros, prejuízos financeiros e até a morte dos acometidos pela dependência da doença.
Testes toxicológicos ou exames antidrogas estão cada vez mais difundidos no âmbito corporativo, principalmente, por multinacionais com unidades em diversos continentes. Nesse caso, algumas questões precisam ser pontuadas. “Em algumas atividades, que realmente podem expor a pessoa e terceiros a riscos, é legal e legítima a testagem toxicológica”, diz Patrícia. Porém, essa ferramenta de identificação não deve ser usada isoladamente. “Uma testagem positiva não pode ser utilizada como retaliação.” São necessários alguns cuidados para introdução desses testes. Transparência na política adotada de combate às drogas, confidencialidade nos resultados, informação sobre os motivos da adoção do exame e concordância dos funcionários são alguns desses requisitos. “Orientação é fundamental. É preciso manter o equilíbrio entre o direito individual, da coletividade e de segurança”.
Os testes toxicológicos não devem ser vistos nem praticados como caça às bruxas, lembra a advogada. “Devem ser uma oportunidade de tratamento, reabilitação e reinserção na sociedade”, observa, ressaltando o fato de muitos trabalhadores dependentes químicos não terem consciência sobre sua doença. “Não sabendo da existência dela, não são tratados, gerando desestruturação pessoal.”
Vale lembrar ainda que, dependendo da situação, recusar-se a se submeter a testes toxicológicos é legítimo juridicamente. “E não deve levar a uma punição ou atestado de culpa.”
Visão abrangente
Na Johnson & Johnson (J&J) a adoção dos exames toxicológicos é avaliada pela equipe responsável pela área de tratamento aos dependentes químicos. “Trabalhamos para melhorar e adequar essa ferramenta [ à realidade da empresa no país ]”, comenta Izabel Rivas, psicóloga do Programa de Atendimento ao Empregado (PAE) da J&J. Ela ressalta a pertinência da análise toxicológica, mas enfatiza que não pode ser um mero teste. “Deve ser mais uma ferramenta. Não a única.”
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Para Izabel, as empresas precisam de políticas de conduta contra as drogas e programas bem estruturados. “O erro é colocá-lo [ o teste ] como ´o´ programa de dependência química.” Na J&J, o cuidado ao dependente é um assunto levado a sério há 31 anos. Quando o PAE surgiu, em 1980, foi criado para atender aos funcionários e familiares diagnosticados como dependentes químicos. Por 25 anos, esse era o principal foco. Graças aos resultados do programa, considerados positivos, ocorreu sua ampliação. Atualmente, o PAE engloba outras ações voltadas a quem deseja parar de fumar, por exemplo. Além disso, ele dá apoio a funcionários com problemas de relações familiares e desequilíbrio orçamentário; ajuda no processo de reeducação alimentar (combate à anorexia e bulimia); orienta pais na educação dos filhos para prevenção de situações de risco; dá suporte psicológico em momentos de luto e acidentes; e faz uma avaliação da saúde mental para promoção do autoconhecimento e prevenção de problemas de saúde dessa natureza. “A empresa está inserida no contexto social, [ sua ação ] vai além da segurança do trabalho, além da questão da saúde do empregado.”
Dentro dessa visão, a companhia reconhece a mudança ocorrida entre as drogas utilizadas pelos dependentes. “Há 30 anos, havia a predominância do álcool. Hoje, há todo tipo – maconha, cocaína, crack”, conta Izabel. Ao reconhecer este fato, ela faz um alerta pertinente sobre a questão dos usuários. De acordo com ela, muitas pessoas acreditam que quem tem problemas com drogas já está no fundo do poço. Já não está no mercado de trabalho. Já perdeu a dignidade, a família e o emprego. “Quem usa droga está dentro da empresa. Passa um bom tempo na fase do abuso, do uso, até chegar à dependência e, na evolução, para problemas mais graves.” Por isso, Izabel acredita ser necessário rever a abordagem desse problema. “Quantos anos uma pessoa não bebeu para estar comprometida com cirrose?”
O primeiro passo ao combate às drogas, no mundo do trabalho, para Izabel, deve ser a aceitação do problema. Posteriormente, estruturar ações preventivas. “O importante do tratamento é o contato diário com o empregado”, pontua. Além disso, ela destaca a importância de se ter um entendimento amplo da situação. “Existe uma epidemia disseminada na sociedade.” Portanto, o tratamento apenas da dependência é ineficaz, no ponto de vista dela.
É preciso prevenir o uso e abuso das substâncias psicoativas, sejam elas quais forem. “Vivemos numa sociedade mais usuária de drogas”, afirma a diretora do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod), do Governo do Estado de São Paulo, Marta Jezierski. A solidão é um dos motivos alegados por ela para tal afirmação. “O sentimento da solidão facilita o uso das drogas”, conta. Quando ele é aliado ao individualismo, a situação torna-se mais grave. “Uma coisa é beber em uma confraternização. Outra é beber sozinho”, diz Marta, para quem não há nenhuma patologia mais “biopsicossocial” do que as dependências. E em relação ao consumo das drogas entre os gêneros, masculino e feminino, há uma distinção. “Os homens usam por incentivo cultural. As mulheres devido a situações traumáticas.”
Nesse cenário, Marta credita à empresa o papel de esclarecer. Acabar com mitos como o uso do álcool para a desinfecção, cocaína como estimulante, a ideia de que maconha faz menos mal que o cigarro. “As pessoas passam um terço da vida no trabalho. Precisam ser esclarecidas”, finaliza.
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