Há mais coisas entre as organizações e a literatura do que pode imaginar nossa vã filosofia. (Mal) parafraseando a célebre frase de Hamlet, esse parece ser um dos caminhos para preparar as empresas para enfrentar os desafios de um futuro próximo.
Para Dante Gallian, autor de A Literatura como Remédio: os clássicos e a saúde da alma (editora Martin Claret), é por meio da leitura de grandes clássicos que as principais lideranças corporativas (e aqui está o RH também) ampliam o conceito de humanização e a ideia daquilo que é próprio do humano. “Cada vez mais o ambiente corporativo exige pessoas inovadoras, criativas e proativas – portanto, mais humanas e humanizadas. E como nos humanizamos? Entrando em contato com aquilo que é próprio do humano. E nada melhor do que a literatura clássica para nos mostrar essa dimensão”, diz Gallian, que defende a Responsabilidade Humanística das empresas.
Professor e diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Grupo de Pesquisa Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde e o Laboratório de Leitura (LabLei), projeto que recebeu o prêmio Viva Leitura, concedido pelo Ministério da Cultura e pela Organização dos Estados Ibero-Americanos, Gallian, trara desse e de outros assuntos nesta entrevista.
Vivemos em um ambiente assolado pela revolução tecnológica. E já se fala mundo no mundo pós-digital. Como é esse ambiente que está além do tsunami high tech?
A tecnologia é uma coisa boa. Ela está presente na história da humanidade desde a Idade da Pedra, quando observamos, por exemplo, as pontas de lança e os machados que os chamados homens das cavernas utilizavam para caçar e se alimentar.
O problema, hoje, é quanto essa tecnologia assumiu em termos de proporção. Se num primeiro momento a tecnologia era algo da qual o homem se servia primeiro para sobreviver e, posteriormente, para lhe proporcionar mais qualidade de vida, na nossa era digital, quase pós-digital, o grande perigo é nos tornarmos escravos dela – ou seja, a tecnologia instrumentalizando o homem.
A tecnologia é algo absolutamente necessário, que faz parte da experiência humana. O problema não está nela; o problema está no papel e na dimensão que ela assume na vida humana.
Em sua opinião, vivemos em um mundo em desumanização?
Sem dúvida. Vivemos num processo de desumanização cada vez mais radical, na medida em que vivemos em função daquilo que criamos, e não em função do que somos. Para mim, o que ocorreu nos últimos séculos é que fomos criando coisas cada vez mais sofisticadas e poderosas, mas nos tornamos cada vez mais reféns dessas coisas.
O caso mais significativo disso é a Inteligência Artificial, quando passamos a pensar que devemos ser como as coisas que criamos. É nesse sentido que observo a transformação do ser humano em máquina – e, mais grave ainda, tornando-se apêndice da máquina. Quando as pautas, as dinâmicas e a sistemática da vida estão definidas por aquilo que está na internet, no smartphone ou nas redes sociais, podemos dizer que nos tornamos apêndices da tecnologia. E é nesse sentido que a gente se desumaniza.
Como deve ser a empresa do futuro e como ela pode reverter esse cenário de desumanização?
Acredito que as empresas que vão sobreviver e desempenhar um papel importante e duradouro no futuro serão aquelas que apostarem na humanização. Mas em qual sentido? No sentido de se tornarem conscientes de que, mais do que um espaço de produção e lucratividade, serão também um espaço de desenvolvimento humano. E não apenas no aspecto estritamente técnico e profissional, mas também no existencial.
Essas empresas terão papel pioneiro e darão o tom para o desenvolvimento corporativo no futuro. Na minha opinião, hoje, as corporações estão muito focadas na perspectiva do desenvolvimento digital e tecnológico, pensando o futuro com Inteligência Artificial e robôs. Mas e o fator humano? De que vai adiantar essa revolução tecnológica, do ponto de vista de operação, se o fator humano não estiver presente? E, aqui, falo sobre sensibilidade, inovação e criatividade, por exemplo. Para termos isso, é preciso cultivar o aspecto humano. E, para cultivá-lo, as empresas terão de ser espaços de desenvolvimento do humano de maneira cada vez mais ampla e aprofundada.
E nessa empresa, quais os papéis da área de recursos humanos e das lideranças?
O primeiro papel é perceberem que só se pode pensar em lucratividade e produtividade a partir do fomento da dimensão humana e do investimento no humano. Nesse sentido, as lideranças – principalmente da área de RH – terão papel cada vez mais importante. Por isso, o momento atual é de se preparar para o futuro, formando essas novas lideranças. Temos de ter líderes da área de recursos humanos cada vez mais humanistas; pessoas que transcendam uma formação técnica, sistemática, e que possam descobrir o valor, a dimensão e a amplitude do fator humano.
Por essa razão é que acredito que essa liderança de recursos humanos também será a mais importante de uma empresa. Porque, para todas as outras áreas, temos recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados. Mas, do ponto de vista da formação humana, essas lideranças se tornarão absolutamente indispensáveis. E para que isso ocorra, é fundamental investir na formação humanística desses colaboradores. O líder de RH do futuro deverá ser um perito em Humanidade, terá de ir além do escopo ou do território de formação definido hoje, terá de estar antenado e focado em aspectos humanísticos que envolvam a filosofia, a antropologia, a literatura e assim por diante.
Em seu trabalho, o senhor promove, entre outras ações, laboratórios de leitura para facilitar esse processo de humanização. Como fazer essa ponte entre os grandes clássicos, e as boas obras da atualidade, para a vida corporativa?
Os clássicos não são clássicos por acaso. Por que continuamos lendo a Odisseia, de Homero, escrita no século VIII a.C.? Ou por que William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Machado de Assis e muitos outros continuam vendendo, sendo reeditados, traduzidos e principalmente lidos? Isso significa que, independentemente de sua origem, cultura, língua ou tempo histórico, esses autores conseguiram, de alguma maneira, traduzir a experiência humana de forma universal e perene.
É por isso que continuam sendo lidos. É claro que grandes obras continuam sendo escritas – e vão continuar sendo. Mas o fator que determina o clássico é sua perenidade. Ao trabalhar com clássicos, tocamos nas questões essenciais da existência humana. E ao tocar nessas questões, levamos humanização para o ambiente corporativo. É nesse aspecto que podemos dizer que o trabalho com essas obras amplia o conceito de humanização e a ideia daquilo que é próprio do humano, que é exatamente o que buscamos. Cada vez mais o ambiente corporativo exige pessoas inovadoras, criativas e proativas – portanto, mais humanas e humanizadas.
E como nos humanizamos? Entrando em contato com aquilo que é próprio do humano. E nada melhor do que a literatura clássica para nos mostrar essa dimensão, criando uma espécie de antídoto para esse “homem-máquina”, esse “homem-tecnologia”, esse “homem-rede social” em que nos transformamos. Por isso acho que voltar aos clássicos e trabalhá-los acaba se tornando um recurso humanizador extremamente eficaz e importante no ambiente corporativo.
Como definir Responsabilidade Humanística e quais os benefícios que ela traz para as empresas?
Costumo definir a Responsabilidade Humanística como sendo o Fourth Botton Line, a partir dessa ideia que vem se espalhando no âmbito das empresas, do Triple Botton Line, que entra na perspectiva da competência produtiva e da lucratividade, por um lado, e, num segundo momento, na questão da responsabilidade social e da sustentabilidade, hoje perfeitamente associadas às competências e aos valores das companhias.
Seguindo essa mesma linha, acho que a Responsabilidade Humanística aparece como a quarta e fundamental dimensão de valores a ser incorporada e desenvolvida pelas empresas em ambiente corporativo. Com ela, a companhia torna-se responsável pelo aspecto social, ecológico e também pelo aspecto humano, humanístico. Portanto, trata-se de aprofundar e ampliar o conceito de sustentabilidade não só para o ambiente externo, mas também – e principalmente – para o ambiente interno. Trata-se de uma espécie de “sustentabilidade da alma”.
E isso tem muito a ver com esse ambiente desumanizador e patológico que o ambiente corporativo vive nos dias atuais. Além de produzir riqueza e lucratividade, a empresa, muitas vezes, produz doenças. Ela aparece como uma grande produtora de desumanização. E isso é uma coisa paradoxal, que conta contra ela própria. Por isso eu creio que, embora o conceito de Responsabilidade Humanística esteja surgindo agora, a partir das nossas pesquisas e iniciativas, ele sem dúvida veio para ficar.
Acho que este é o grande desafio das empresas no futuro – ou seja, companhias tornando-se humanisticamente responsáveis e assumindo a importância e a necessidade de cuidar da alma dos seus colaboradores, para que eles consigam produzir diferencial e transformem o ambiente corporativo num ambiente mais saudável e produtivo.
Um desses benefícios está atrelado ao conceito de felicidade (aumentar a percepção de felicidade dos colaboradores). Mas pelo fato de ser um conceito tão subjetivo, aparentemente, como mensurar isso em uma empresa?
Gosto mais de falar do conceito de humanização e de saúde do que propriamente de felicidade. Acho rasa a maneira como a felicidade vem sendo pensada e propalada no atual contexto sociocultural. O que eu percebo é que se associa felicidade a prazer. E acho que a experiência humana, embora ligada ao prazer, vai muito além.
A vida do homem tem espaço para o prazer, claro, mas também tem espaço para a dor, o esforço e as frustrações, por exemplo. E tudo isso, no contexto geral, faz parte da felicidade. Por isso penso que a felicidade está ligada ao processo de amadurecimento e humanização, que costumo definir a partir de uma frase do filósofo francês Montesquieu, que fala da humanização enquanto ampliação da esfera da presença do ser.
Entendo que enquanto estivermos ampliando nossa alma, nossos conhecimentos, nossa experiência, crescendo interior e exteriormente, podemos dizer que, em certa medida, estamos sendo felizes, porque estamos realizando aquilo que nos é próprio – ainda que muitas vezes esse processo seja marcado por conflitos, tristezas, perdas e dores. De qualquer forma, não acredito que isso seja contrário à felicidade. Acho que é possível dizer que somos felizes mesmo quando passamos por dificuldades e conflitos, desde que estejamos nesse caminho de ampliação, aperfeiçoamento e humanização. Naturalmente, medir tudo isso é algo bastante difícil.
Tentar utilizar um referencial algorítmico para mensurar uma experiência que transcende qualquer tipo de lógica matemática é complicado. Penso que se queremos mensurar isso de alguma forma, temos que trocar nossas dimensões de medidas e pensar numa medida que não seja algorítmica, mas hermenêutica. E o que significa isso? Significa olhar um fenômeno de vários ângulos, de uma forma muito mais qualitativa do que quantitativa. E, nesse sentido, eu mesmo já venho desenvolvendo algumas formas, a partir do meu trabalho como pesquisador na universidade, para mensurarmos em que medida a gente pode dizer se está havendo ou não humanização.
Os recursos utilizados nesses casos são narrativos, de expressão, impossíveis de serem colocados em tabelas – até porque não devem ser colocados em tabelas, já que estamos falando de outra dimensão da realidade, de uma dimensão que escapa a essa perspectiva algorítmica com a qual estamos muito mais acostumados a lidar.
Falando em Shakespeare há, em Hamlet, uma frase significativa: “O estar pronto é tudo!”. Como fazer com que as lideranças, em especial as de RH, a estarem prontas para trilhar um novo caminho em meio a tantas incertezas que batem na porta das empresas (e fora delas também)?
Temos de estar prontos para tudo. E o que nos prepara para esse tudo, para esse mundo incerto, cheio de surpresas e em constante transformação, como o que vivemos hoje? É ir ao encontro daquilo que é realmente próprio do humano. Acabamos criando armadilhas para nós mesmos, com a hipervalorização da crença na razão e no planejamento.
Obviamente, não quero dizer que não tenhamos que pensar ou planejar. Mas o que percebo é que apenas com o instrumento da razão, do intelecto e do planejamento é impossível lidar com a complexidade do mundo. E, aproveitando a menção a “Hamlet”, cito outro trecho dessa mesma peça de Shakespeare que nos coloca diante de uma grande questão: “Nosso tempo está desnorteado. Maldita sina que me fez nascer um dia para consertá-lo”.
Como consertar essa realidade desconsertada?Apenas com a razão ou com o intelecto? Não. Tem de haver muita sensibilidade e todo um trabalho do ponto de vista dos afetos, sentimentos, criatividade, intuição e, principalmente, da vontade. Retomo “Hamlet”, no famoso monólogo do “ser ou não ser”. Para mim, esse ser ou não ser significa fazer ou não fazer. Porque o que nos define não é o que pensamos, mas o que fazemos. E príncipe Hamlet prossegue: “O excesso de razão nos faz todos covardes”. Muitas vezes, gastamos tempo e energia no processo do planejamento e da estratégia, mas nos esquecemos que a vida sempre acontece da forma como não planejamos. A vida é aquilo que te acontece quando você está ocupado planejando a própria vida.
Precisamos mudar esse foco. Precisamos valorizar as outras duas dimensões da experiência do humano, hoje desvalorizadas. Desde Descartes, que estabeleceu que existimos porque pensamos – “penso, logo existo” –, acabamos descartando as outras dimensões, que, segundo Aristóteles, são a do afeto e da vontade. Por isso, creio que o grande desafio da sociedade atual – e não apenas do mundo corporativo – é resgatar essa tridimensionalidade da experiência humana, que não fica só no intelecto, mas que parte do afeto, da inteligência e da vontade. É nesse sentido que estaremos mais bem preparados para enfrentar os desafios impostos pela vida.
Quando o senhor começou a trabalhar com textos clássicos junto aos alunos das áreas de medicina e saúde, qual a primeira reação deles ao serem questionados sobre o que sentiam a partir dos textos? Algum silêncio longo de segundos, (risos)?
Não só de segundos, mas de minutos (risos). E continua sendo. Quando eu trabalho com os textos clássicos, como faço no Laboratório de Leitura, a primeira abordagem é “O que você sentiu? Quais foram os seus sentimentos e os seus afetos?”. Já nesse momento percebo a incrível dificuldade que as pessoas têm em expressar esses afetos e em falar sobre suas experiências subjetivas. Por quê? Porque não fomos educados para isso. A abordagem do ponto de vista de literatura, ou de qualquer texto, nunca parte da experiência primária, que é sempre afetiva.
Em geral, os alunos são sempre convidados a fazerem uma análise meramente intelectual e conceitual do que leram. Não interessa o que sentiram ou experimentaram; interessa que saibam se aquele texto é do Realismo, Simbolismo ou Romantismo, se o narrador está em primeira ou terceira pessoa e todas aquelas outras coisas que a gente acabou sendo treinado para responder nos testes de múltipla escolha. Assim, quando você convida as pessoas a fazerem a experiência estética de uma obra de arte, de uma obra literária, e a expressarem os sentimentos e afetos causados por ela, num primeiro momento cria-se um clima constrangedor – afinal, trata-se de uma abordagem inusitada. Mas é preciso reeducar as pessoas; é preciso revalorizar essa dimensão afetiva, que é a base de todo o processo de humanização. E o primeiro passo reconhecer o afeto como experiência humana primordial. Por isso, fazer esse tipo de trabalho é algo realmente disruptivo, que exige paciência e afinco na desconstrução do processo educacional. Mas, uma vez que insistimos, conseguimos grandes resultados, pois começamos a perceber que as pessoas se sentem muito valorizadas, sentem-se muito bem, sentem-se mais humanizadas quando lhes são abertos espaços, com respeito e escuta, para que digam o que sentiram e experimentaram lerem uma obra clássica, por exemplo.
Se houve esse silêncio, e se ele é comum, o que podemos inferir? Que as pessoas não estão acostumadas a revelarem os sentimentos? Isso seria um mal que o mundo corporativo, por exemplo, acaba instigando nas pessoas: empresa é lugar de resultados, cartesiana, sem emoções (de forma geral, claro)?
Diante de uma demanda em que as pessoas são colocadas para falar a respeito de seus próprios sentimentos, a partir de uma experiência estética, que é aquela que a literatura proporciona, o silêncio prova que não estamos acostumados a revelar nossos sentimentos. Portanto, nossos sentimentos seriam irrelevantes. E isso já começa na escola, na educação básica, passa pelo ensino médio e vai até a universidade. É uma cultura que, de certa forma, despreza os sentimentos. E, ao desprezar os sentimentos, desprezamos uma das dimensões mais fundamentais – senão a mais fundamental – no processo da identificação e construção do ser humano e da humanização. Naturalmente, este é um mal que também está presente no cotidiano corporativo. Afinal, a empresa reflete um pouco essa mentalidade, não só cartesiana, mas produtivista, de que ela é lugar de resultados. Assim, os seres humanos são imaginados como meros instrumentos para atingir esses resultados. E quando você pensa o ser humano apenas como um instrumento para atingir resultado, você pensa o ser humano enquanto máquina e meio, e não enquanto fim em si mesmo. Isso é profundamente desumanizador e patologizador – até porque, no final, esse padrão de fato gera patologias e doenças. E sendo hoje o mundo corporativo um dos espaços mais incentivadores e produtores de doenças em nossa sociedade, não resta dúvida que o ambiente empresarial acaba sendo prejudicado com a manutenção dessa perspectiva. Num momento em que a empresa busca resultados de maneira desenfreada e absurda, o efeito colateral é que ela também acaba produzindo doenças em igual proporção, e essas doenças vão comprometer o próprio resultado da empresa. Por isso precisamos rever esse modelo, a partir da constituição de companhias mais humanizadas, com espaços e práticas de manifestação da expressão e trabalho dos sentimentos. Nesse sentido, baseado em práticas executadas há mais de 15 anos, penso que a experiência estética, por meio da literatura, é um caminho extremamente eficaz, revelador, produtivo, humanizador e promotor de saúde, em última análise.
E como quebrar essa barreira? Como é levar essa cultura humanística para a gestão? Quais os obstáculos que enfrenta?
Num primeiro momento, todo mundo se encanta por nossa proposta. É difícil alguém dizer que isso é totalmente fora de propósito ou de contexto. Creio que quando você se refere à experiência do mundo corporativo atual, são pouquíssimos os líderes e gestores que não reconhecem que o espaço empresarial tem sido, infelizmente, um espaço de adoecimento e desumanização. Todo mundo concorda com isso. O que gera alguma discordância, às vezes, é em como transformar essa cultura patologizante e desumanizadora numa cultura humanizadora. É neste ponto que vejo a proposta da Responsabilidade Humanística, por meio do Laboratório de Leitura e de outras atividades, como bastante oportunas. Por outro lado, reconheço, trata-se de algo ainda bastante intangível para alguns gestores, que acham um tanto diferente levar arte e literatura para dentro do espaço corporativo. O que tentamos mostrar a eles é o quanto esse investimento na formação cultural e humanística pode se converter num bem para a empresa, inclusive do ponto de vista da lucratividade e produtividade.
Felizmente, temos conseguido mostrar, por meio de cases já desenvolvidos, como as empresas que investem nessa cultura humanística passam, por exemplo, a registrar maior retenção de talentos – principalmente no âmbito das lideranças – e menores índices de absenteísmo. Esse tipo de dado é mensurável; são aspectos quantitativos. Também mostramos aos gestores que há aumento do nível de satisfação das pessoas com o ambiente de trabalho quando elas começam a perceber que aquele local é, também, um espaço de desenvolvimento humano e de aprendizado, e não apenas do ponto de vista profissional e técnico, mas sim do humano, permitindo que o que lá foi aprendido possa ser levado para todas as esferas da vida. Por isso, penso que assim como aconteceu com sustentabilidade, que num primeiro momento parecia algo despropositado para uma empresa, mas depois se tornou indiscutível e presente no próprio DNA das corporações, o mesmo vai acontecer com a Responsabilidade Humanística. É uma questão de tempo.
E quais obras (e por quais razões, sucintamente) indicaria para quem quer começar novas conversas consigo mesmo e com outros no ambiente de trabalho?
Inúmeras (risos). Mas minha experiência nessa última década de trabalho com a literatura clássica no ambiente corporativo me mostra que algumas, em particular, têm um poder mobilizador e humanizador extremamente eficaz e interessante. A primeira que eu indicaria é A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói. Um livro pequeno, porém extremamente denso, de leitura simples e prazerosa, que coloca em questionamento muito dos valores e princípios que hoje são propalados, mas que também causam boa parte dos adoecimentos, incertezas e frustrações que vivemos na carreira e na luta por se manter ativo no mundo do trabalho. Essa obra fala de um homem que apostou toda sua vida e suas fichas na carreira, entendendo a felicidade como uma vida leve, decente e agradável. Depois, quando está no auge da carreira, adoece. Ao adoecer, começa a perceber a insustentabilidade daquilo que criou, a falta de substância e de vida dentro dessa suposta carreira de sucesso que havia lutado a vida inteira para conseguir. Penso ser este um bom livro para o início de um processo de humanização nas empresas, pois coloca as pessoas em contato com o real propósito da vida.
Se o propósito da vida é simplesmente se tornar um profissional de sucesso, é preciso tomar muito cuidado. Porque, no final, corremos o risco de não sermos nem um profissional de sucesso, nem propriamente uma pessoa. Um outro texto do qual gosto muito é Hamlet, de William Shakespeare. É um tratado sobre o homem moderno, a tomada da consciência, o destino e o que nos cabe fazer; o que cada um de nós tem que fazer diante desse mundo desconsertado. Nas situações de liderança, por exemplo, temos um mundo que precisamos consertar. Mas como fazê-lo? A obra traz um questionamento muito interessante e libertador nesse processo, na medida em que mostra que não basta apenas ter inteligência; é preciso ter sensibilidade e coragem. Por último, gostaria de destacar uma pequena grande obra de José Saramago, autor de língua portuguesa. Chama-se O Conto da ilha desconhecida, que a fala a respeito de um homem que sonhou em ter um barco para ir ao encontro de uma ilha desconhecida. Acho este conto extraordinário, muito bem escrito, e que também fala a respeito de propósitos. E propósito é, sem dúvida, um dos grandes temas discutidos atualmente no mundo corporativo. Mas o propósito deve ser algo que transcenda metas e objetivos quantitativos. Para mim, propósito tem a ver com propósito de vida. E acho que sair em busca dessa ilha desconhecida é sair em busca de nós mesmos, daquilo que está no nosso âmago. Trata-se de uma narrativa que fala, ainda, sobre liderança, trabalho colaborativo e inspiração.
*Conteúdo publicado na edição junho/2019, da Revista Melhor RH.