Os dados já não eram os melhores. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), somos um país campeão em ansiedade, com 9,3% da população enquadrada nesse diagnóstico. Segundo levantamento da International Stress Management Association (Isma-Br), cerca de um terço dos trabalhadores brasileiros sofre com os efeitos do estresse, um dos primeiros sinais da síndrome de Burnout.
Em outra pesquisa, desta vez da consultoria Talenses, 49% dos profissionais no Brasil já passaram por crises de ansiedade e 44% já afirmaram ter sofrido com o esgotamento mental, em função do Burnout.
Nada que não possa ser explicado, ou justificado, por uma série de razões e fatores que compõem um mundo cada vez mais assolado por mudanças rápidas e, muitas vezes, disruptivas – capazes de transformar mercados (ou acabar com eles) e profissões (idem). Nesse movimento quase que alucinado, aumentam a pressão e a cobrança por resultados nas organizações, que contam cada vez mais com equipes mais reduzidas e que mantêm diante de si um grande ponto de interrogação quanto ao seu futuro.
Olhar o copo de água meio cheio ou meio vazio? Entram, ou ao menos deveriam entrar, em cena os líderes, capazes de ajudar a lidar com esse sentimento e angústia, e também as empresas, buscando dar mais atenção ao tema saúde mental ou emocional de seus colaboradores. Numa época em que é preciso contar com o máximo dos seus talentos, olhar para o colaborador de forma integral é mais do que uma atitude “saudável”, é a única atitude que se espera.
Contar com corações e mentes talvez seja o mantra mais forte daqui para frente – em especial em um momento em que o mundo vive às voltas com uma pandemia de covid-19, obrigando seus habitantes a um isolamento.
Nas empresas, isso significa, mais uma vez, rever sua relação com os colaboradores, seus cuidados com eles, em especial quando passam a trabalhar de casa, uma realidade para muitos nova, ainda cercada de dúvidas capaz de aumentar a pressão, a ansiedade e possíveis problemas emocionais em quem está longe dos demais.
Mas há uma luz no fim do túnel, com empresas que já vêm se preocupando com esse aspecto da saúde de seus funcionários, antes mesmo desse novo rumo dado aos negócios. Além disso, muitas já manifestavam interesse em implementar programas voltados à saúde emocional e mental, como revela uma pesquisa da Mercer Marsh Benefícios .
Por aqui, veremos como algumas já se anteciparam ao assunto e como prepararam suas lideranças. Resta saber como, ao fim deste período de isolamento e controle da pandemia, o tema será tratado por todas as empresas.
Participação de todos
Luciana Coen, diretora de comunicação integrada e responsabilidade social corporativa, e que também lidera as iniciativas de saúde mental na SAP, percebe uma preocupação crescente por parte das empresas em relação ao tema. E assim como acontece em outros assuntos, ela percebe que as organizações estão em diferentes graus de maturidade.
“Atualmente, vivemos na economia da experiência, em que felicidade e generosidade importam; com isso, as empresas necessitam repensar os modelos de gestão para priorizar a saúde física e mental de suas equipes, com transparência e confiança”, diz.
A SAP Brasil é piloto de uma iniciativa global da companhia, com o lançamento, em julho do ano passado, da campanha Mental Health Matters. O objetivo é criar um ambiente seguro e livre de preconceitos para se falar abertamente de doenças mentais, prevenção e bem-estar na área de saúde psicológica. A campanha promove conteúdo, ações e ferramentas que podem apoiar todos os colaboradores a cuidar mais da saúde mental.
“A iniciativa conta com a participação dos times de RH, diversidade e inclusão, comunicação e marketing. Mas, a cada atividade vamos colhendo inputs de todos os funcionários que participam. Assim, acabamos tendo uma criação coletiva, que funciona em prol de todos”, diz Luciana.
Desde o lançamento do programa, houve uma preocupação em envolver as lideranças e comunicar aos colaboradores sobre a participação deles a partir dos canais que a empresa regularmente usa, além de ter sido criada uma campanha especial. Depois, entraram em cena convites para palestras, rodas de conversa e criação de canais exclusivos, para que todos estivessem amparados emocionalmente para os desafios do mercado de tecnologia e das relações de trabalho.
“Todos os 1.100 funcionários da SAP Brasil são convidados a participar das atividades. Entre elas, temos o Chá com a Cris [Cristina Palmaka, presidente da empresa]. Esse encontro é um convite à reflexão sobre o equilíbrio entre vida pessoal e carreira, o que os funcionários têm feito por eles e pelas equipes e sobre a importância do acolhimento quando algum profissional relata um problema desse tipo, entre outras reflexões”, destaca a executiva.
Ela afirma que, se o funcionário está equilibrado mental e fisicamente, ele trabalha e vive com maior entusiasmo. “Isso contribui para reduzir os afastamentos por saúde mental e até aumentar os casos reportados, porque as pessoas passam a se sentir seguras, por exemplo, e são encaminhadas para tratamento. Além disso, é possível fomentar a mudança de hábitos, melhorar a qualidade de vida e, também, levar à reflexão sobre equilíbrio entre vida pessoal e carreira.”
Quem também percebe uma maior preocupação por parte das empresas em relação ao tema saúde mental/ emocional é Mardely Vega, vice-presidente de RH da Sodexo Benefícios e Incentivos. Ela lembra de dados de um relatório global da Organização Mundial da Saúde (OMS) que revela que o número de pessoas que vivem com depressão teve um aumento de 18%, entre 2005 e 2015, atingindo indivíduos de todas as idades.
“Com dados tão alarmantes, as empresas entenderam que não se pode tratar a saúde física separada da emocional. A possibilidade de as pessoas adoecerem devido às questões ligadas ao trabalho, estresse e depressão se tornaram fatos que, infelizmente, fazem cada vez mais parte do dia a dia de grandes companhias”, diz Maderly, da Sodexo.
Sigilo
Na Sodexo, o entendimento é de que é fundamental dedicar atenção e oferecer ajuda para pessoas que convivem com situações adversas, prejudiciais à sua integridade física e psicológica. Para ajudar os colaboradores com os desafios da vida cotidiana, há cerca de quatro anos a empresa deu início ao programa Apoio Pass, um serviço de apoio preventivo e corretivo para melhorar a qualidade de vida dos profissionais e, também, de seus familiares.
Com garantia de sigilo das informações e participação de profissionais de cada área contemplada, a solução disponibiliza orientação financeira, legal, social e psicológica por meio de um atendimento que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, por meio de uma linha telefônica.
A executiva da Sodexo destaca o papel da liderança quando o assunto é saúde mental. “O líder está à frente, geralmente, por sua capacidade técnica; entretanto, é preciso também que ele saiba como lidar com as pessoas, criar um ambiente saudável, abordar o colaborador de forma ética e contribuir para a resolução de problemas pessoais, a fim de que os profissionais possam desempenhar suas atividades de maneira adequada”, comenta.
“Mais do que orientar, uma solução talvez seja mostrar, na prática, os benefícios que uma equipe saudável, em todos os sentidos, proporciona para a companhia. Nesse sentido, investimos sistematicamente no aperfeiçoamento e desenvolvimento de nossas lideranças, oferecendo, inclusive, treinamentos e fóruns que discutem temas bastante atuais e complexos como diversidade, inclusão, equidade de gênero, entre outros”, ressalta.
Na SAP Brasil, o trabalho de preparação dos líderes envolve uma sensibilização para o tema, desmistificando o assunto como tabu, reforçando a necessidade de compreensão e acolhimento quando algum colaborador informar problema de saúde mental. As primeiras edições do Chá com a Cris, aliás, aconteceram exclusivamente com as lideranças justamente para prepará-las e para promover o engajamento delas.
“Focamos bastante o desenvolvimento dos líderes, ajudando-os a serem cada vez mais coaches, focados no desenvolvimento de suas equipes, o que inclui a saúde emocional. E, não menos importante, a busca da diversidade em todos os aspectos, como forma de construir um ambiente saudável e inclusivo”, diz Luciana.
Escuta ativa
Carolina Dassie, CEO e fundadora da Hisnëk, startup que desenvolveu uma Inteligência Artificial para ajudar colaboradores e gestores na identificação de problemas emocionais, conta que na empresa não há tabu sobre saúde mental. “Afinal, trabalhamos com isso. E 90% dos nossos colaboradores fazem terapia e todos tem acesso à Ivi, nossa Inteligência Artificial que é capaz de conversar com os colaboradores individual e anonimamente, entender se estão passando por um transtorno mental e ajudá-los”, diz.
Ela lembra que, no passado, houve um caso de patologia mental em um dos colaboradores da empresa. “Nossa posição foi de total apoio durante o tratamento. É fundamental que o colaborador se sinta apoiado pela organização em um momento como esse, mas isso precisa estar enraizado na cultura para que todos se sintam à vontade para pedir ajuda.”
Para tanto, na Hisnëk há um forte trabalho na preparação dos líderes em escuta ativa. “É essencial deixar espaço para que o colaborador possa conversar com o gestor e que, nessa conversa, o gestor tenha uma escuta atenciosa para perceber se esse colaborador está precisando de algum apoio emocional ou não”, diz Carolina. E para que a liderança tenha esse cuidado, essa diretriz precisa vir da alta gerência para que a cultura do cuidado emocional se enraíze dentro da companhia e se torne algo natural, rotineiro.
Em alguns casos, infelizmente, a própria liderança pode se tornar tóxica, capaz de criar ou aumentar os problemas de saúde emocional (neste caso, vale até reconsiderar o termo liderança para esses profissionais…).
Carolina conta que no dashboard da Ivi, é possível ver muito claramente quando isso ocorre. “Nesses casos, o indicado é que o RH tenha uma conversa de alinhamento com esse líder para que haja a conscientização de quão improdutivo é ter uma postura que afeta negativamente a saúde emocional dos colaboradores”, diz.
“Mas não podemos esquecer que também devemos ter a escuta ativa com essa liderança, pois às vezes ela está precisando de apoio que não está recebendo”, finaliza. [Gumae Carvalho]