Jorge Fornari foi executivo de RH de grandes empresas tais como J&J, American Express, Claro, Brasil Telecom. Aos 67 anos, ele se define como um animal em discutível fase de evolução. Essa autoavaliação decorre dos recentes estudos a que ele se dedicou para entender o impacto da evolução humana, e da nossa genética, em nosso dia a dia – dentro e fora das empresas. “Desde o primeiro hominídeo – grupo que abrange os primatas – até o Homo sapiens, o cérebro humano cresceu três vezes. Esse crescimento foi modular, o que significa que novas funcionalidades foram incorporadas sem que as antigas fossem eliminadas, e isso faz com que tenhamos ao mesmo tempo funcionando em nossas cabeças programações primitivas e evoluídas”, diz Fornari, que acaba de lançar O executivo na essência (Editora Évora). E é essa coexistência entre uma parte mais primitiva e outra mais evoluída em nossas cabeças uma das possíveis causas de nos fazer seres paradoxais, dogmáticos e contraditórios. E como lidar com isso nas empresas? O que o profissional de RH pode fazer para entender mais sobre essa “genética” do comportamento empresarial? “Uma das premissas do livro é que não basta desenvolver competências, é igualmente importante conter as incompetências, os comportamentos que nos derrubam”, antecipa-se Fornari. Veja mais na entrevista a seguir.
MELHOR – Qual a razão de buscar o executivo na essência, qual é o propósito do livro?
Jorge Fornari – Primeiro, foi o de introduzir a visão evolucionista – genética – na bagagem de conhecimentos do executivo, do gestor, do profissional de RH, dando a eles um ângulo adicional para melhor entenderem a si mesmos. Segundo, foi o de provocar, criar polêmica, discordâncias. Temos de sair da mesmice que permeia a vida corporativa e a área de RH. No caso de RH, a área se funcionalizou e está mais preocupada com processos e ferramentas do que com conteúdo. Isso não é um mal per se, mas o profissional de RH tem a obrigação de ter uma formação cultural e científica mais profunda. É a área que representa as pessoas, os humanos. Fui abaixo do verniz social que esconde muitas imperfeições humanas e gerenciais, as quais cada pessoa nega para proteger seu “eu ideal”, aquele que, boa parte, nos foi imposto nas fases iniciais de nossa vida. Há um bocado de porcarias que comandam nossas mentes as quais nem percebemos, e, por decorrência, nunca se resolvem. Fomos educados para ter uma imagem divina, romântica e filosófica de nós mesmos. Milhares de livros foram escritos para nos dizer como devemos ser, mas eles pouco têm ajudado a construir pessoas e um mundo melhor. Idealizamos um “ser humano” que ainda não existe. Desprezamos ou ignoramos o fato de que somos uma espécie animal ainda imaturo, o Homo sapiens, que guarda dentro de si impulsos danosos, os quais podem ser observados em profusão em todos os campos da vida humana, e para tal basta abrir o jornal do dia.
De onde surgiu esse tema?
Há muito eu vinha me questionando sobre por que sentimos, pensamos, agimos de maneiras que desagradam a nós mesmos. Por que fazemos o oposto do que acreditamos? Por que ofendemos a quem amamos? Que força interior é essa que nos leva a nos sentir culpados pelas coisas que fazemos? Cheguei mesmo a pensar que o problema era só meu, mas logo vi que cada pessoa é assim em maior ou menor intensidade. Daí comecei uma pesquisa sistemática que resultou no livro.
Não haveria aí um certo exagero ao focar esse lado negativo do ser humano?
É importante frisar que a pesquisa foi dirigida para o lado negativo da genética humana, mas isso não reduz em nada as muitas coisas maravilhosas também oriundas da genética. Achei que seria bom dar ao gestor e profissionais de RH um choque de realidade. Veja, se aplicássemos dez por cento da sabedoria e dos conselhos dos milhares de livros de tanta gente brilhante, o mundo estaria melhor por certo. E por que não o fazemos? A culpa é da maneira como nossa genética interfere no funcionamento do nosso cérebro. Falta um elo no conhecimento dos profissionais de RH e o livro se propõe a formar esse elo. A evolução é um tema desconhecido. As pessoas precisam saber mais sobre sua história genética e como ela afeta nossa maneira de ser nos dias de hoje. A Terra existe há 4,5 bilhões de anos e estamos no início do Antropoceno, o período geológico da Terra no qual o “novo humano” está causando enormes estragos. É o momento certo para repensar o sentido de ser um “ser humano” antes que acabemos com o planeta.
Qual é a base da sua pesquisa e argumentação?
É a evolução, a biologia social, a psicologia evolucionista, matérias que se desenvolveram nas últimas décadas e que a maior parte de nós conhece pouco. Na minha pesquisa, transitei pela história, religião, filosofia, neurociência, mas foi quando pisei o solo evolucionista que senti estar tocando as causas dos nossos piores comportamentos. Confesso que me apaixonei pelas evoluções da Terra, da vida e dos humanos, as quais passaram a ser minhas crenças básicas sobre nossa essência. Preocupa-me a visão ilusória que temos da realidade social, criada pela evolução da nossa mente numa fase mais recente do cérebro, e que ainda está envolta numa espessa névoa que impede conhecermos melhor a nós mesmos. E a evolução e genética têm muita coisa a nos dizer.
O que, por exemplo, a evolução tem a nos dizer para nos conhecermos melhor?
O processo evolucionário ocorre a partir da seleção natural e o mesmo aconteceu com a evolução do cérebro. Desde o primeiro hominídeo – grupo que abrange os primatas – até o Homo sapiens, o cérebro humano cresceu três vezes. Esse crescimento foi modular, o que significa que novas funcionalidades foram incorporadas sem que as antigas fossem eliminadas, e isso faz com que tenhamos ao mesmo tempo funcionando em nossa cabeça programações primitivas e evoluídas. Provavelmente, por essa razão é que temos tanta gente falando dentro de nossas cabeças, discordando entre si, nos fazendo seres paradoxais, dogmáticos e contraditórios.
É isso o que chamam de descolamento na evolução social e genética?
Exatamente. A partir de certo momento da evolução do Homo sapiens, as funcionalidades sociais do cérebro evoluíram mais rapidamente que o equipamento biológico que já estava estabilizado. Ganhamos uma mente social única no reino animal, capacidades cognitivas incríveis, capazes de criar uma realidade social incomparável à dos demais animais. Entretanto, as funcionalidades primitivas ainda se fazem presentes em nosso cérebro, fazendo de nós um animal mal adaptado ao mundo social que idealizamos.
Qual é o impacto dessa parte mais primitiva do cérebro em nosso dia a dia?
Vale ressaltar que a parte mais primitiva do cérebro que nos causa problemas é a mesma responsável pelas mais belas coisas que orientam a humanidade, como o funcionamento automático do corpo, o instinto maternal, as trocas positivas que fazemos com nossos amigos etc. Contudo, como qualquer outro animal, quando estamos sob ameaça, agimos atacando ou fugindo.
Isso quer dizer que quando um empregado ou gestor se sente ameaçado numa situação de trabalho seu lado mais primitivo desperta nele?
Exatamente. Muitas empresas, departamentos e unidades menores reproduzem em seus ambientes de trabalho a savana dos nossos antepassados, na qual ou se corre para comer – atacar – ou se corre para não ser comido – fugir. Pessoas lutam por suas ideias como se estivessem dispostas a dar a vida por elas, silos são criados, pessoas trocam farpas polidamente, a naturalidade dá lugar à hipocrisia, e tudo isso tira o foco do trabalho em prol da sobrevivência social, gerando enorme desperdício dos recursos organizacionais. Como somos sensíveis às ameaças, muitos gestores estão sempre esperando que alguém lhes faça algum mal.
Há alguma solução para esse tipo de problema?
Há sim. A mesma seleção natural que nos deu impulsos, tendências e propensões também nos deu um presente de enorme valor que é a consciência. Mas a natureza também escreve certo por linhas tortas. Ao mesmo tempo que nos dá uma capacidade única de pensar, avaliar, escolher e fazer, ela cria barreiras para que possamos usá-la. É preciso entender os humanos numa perspectiva evolucionária. O mais antigo ancestral humano – um pequeno bípede sem rabo – surgiu há 4 milhões de anos. Era um australopiteco, a famosa Lucy, nome baseado numa canção dos Beatles. O Homo sapiens surgiu há 160 mil anos. Veja: caso a existência da espécie tivesse ocorrido no período de 365 dias, um ano, teríamos surgido mais ou menos 16 dias antes do final do ano, e o nosso ancestral que iniciou a agricultura e a formação de grupos que levaram às grandes cidades e, em última instância, às empresas em que trabalhamos, teria surgido no último dia desse ano. Enfim, somos um animal imaturo que tem evoluído muito materialmente, mesmo que um bilhão de pessoas ainda vivam em estado de total privação. Mesmo tendo conseguido tanto progresso tecnológico e material, ainda reagimos impulsivamente, seguindo uma programação mental – crenças e comandos – associada a necessidades básicas que geram comportamentos imediatos, incontroláveis, explosivos ou implosivos. A solução está, portanto, no desenvolvimento de um ser consciente atualizado, responsável, flexível.
Os investimentos das empresas no desenvolvimento de pessoas podem fazer algo a respeito?
Uma das premissas do livro é que não basta desenvolver competências, é igualmente importante conter as incompetências, os comportamentos que nos derrubam. Muitas empresas já começaram a oferecer programas de coaching, mas eles são pontuais e caros. Nossa proposta é desenvolver programas coletivos de reflexão sobre o próprio comportamento, que é a chave que abre a mente para buscar os comandos e crenças que nos derrubam. Temas como liderança, relações com clientes, feedback, trabalho em equipe, solução de conflito e muitos outros precisam ser precedidos pela compreensão da maneira como nossa mente “primata” opera. É preciso conhecer a perspectiva evolucionista para entender como crenças irracionais e necessidades básicas nos fazem operar fora do consciente, nos deixando reféns de nossos piores animais internos.