ANÁLISE
Do papel de mãe e submissa ao marido à Lei Maria da Penha: especialista mostra algumas das principais conquistas das mulheres
Ao longo dos anos, as transformações por que passou a família estão intimamente ligadas à conquista de direitos pelas mulheres. Nesse sentido, a professora Marcela Rodrigues Souza Figueiredo fez um resgate histórico dos direitos da mulher no Brasil. Mestre em ciências sociais e jurídicas pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcela é advogada de família e mediadora de conflitos do Núcleo de Prática Jurídica Evandro Lins e Silva da faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Ibmec e professora de Direito de Família da graduação do Ibmec/RJ.
A família do início do século era instituída somente pelo casamento. Nessa época, o Código Civil vigente, publicado em 1916, trazia um modelo de família matrimonializado e centrado na figura do pai, que era considerado o chefe da sociedade conjugal. Nesse arranjo familiar, a mulher era considerada apenas uma colaboradora do marido, cujos direitos e deveres conjugais eram distintos daqueles previstos ao cônjuge varão. Quando se casava, era obrigada a adotar o nome do marido e perdia sua capacidade plena, tornando-se relativamente incapaz. Ou seja, para praticar certos atos, precisava ser assistida pelo marido e só podia trabalhar se autorizada por ele. Por tal motivo, também não podia votar.
A mulher ainda era submetida ao constrangimento de seu marido requerer a anulação do casamento caso descobrisse que não era virgem antes do casamento. Nessa época, os casamentos eram indissolúveis.
A hegemonia masculina nessa sociedade era total e pouco espaço no campo jurídico e social era reservado à mulher, destinada a cumprir o papel de esposa e mãe dedicada, de “Amélia”, considerada mulher de verdade nos versos de Ataulfo Alves, no samba de 1942. Fora dessa personagem, a mulher não tinha utilidade, causava desgosto aos pais e era “mal vista”.
Mas essa desigualdade no tratamento de gêneros começou a mudar impulsionada pelos movimentos feministas que lutavam por liberdade e isonomia em todos os setores sociais.
Somente em 1932, a mulher passa a ter direito ao voto. Em 1943, surge com a Consolidação das Leis Trabalhistas, a licença-maternidade. Em 1962 com o chamado Estatuto da Mulher Casada, que lhe é devolvida a capacidade plena para a prática dos atos civis e a dispensa de autorização do marido para trabalhar, além de prever outros direitos.
Também nessa época surgiu a pílula anticoncepcional, que possibilitou ficasse em mãos femininas a decisão de ter filhos, o que permitiu uma maior inserção da mulher no mercado de trabalho.
Em 1977, foi publicada a chamada Lei do Divórcio, que previu, dentre outros direitos, a dissolução do casamento pelo divórcio e a faculdade de adoção do nome do cônjuge.
Em 2002, foi publicado o novo Código Civil, revogando o anterior, que repetiu a sistemática da Constituição e garantiu igualdade de tratamento aos homens e mulheres nas suas relações civis, porém, mais notadamente, no âmbito familiar.
Em 2006, foi então publicada a chamada Lei Maria da Penha que criou mecanismos para prevenir a violência doméstica e familiar, visando assegurar a integridade física, psíquica, sexual, patrimonial e moral da mulher. Em 2008, foi publicada a chamada Lei de Alimentos Gravídicos, visando garantir o sustento da mulher gestante a ser suportado pelo suposto pai de seu filho, por ela indicado.
Segundo Marcela Rodrigues Souza Figueiredo, muitas foram as conquistas das mulheres no âmbito legal. “No entanto, a lei não consegue eliminar a violência simbólica da qual a mulher ainda é vítima diariamente. Ainda existe um ranço machista em nossa sociedade, resquício de uma época não tão distante, que ainda se faz presente na vida hodierna”, diz.
Para Marcela, “condena-se a mulher que aborta, mas se esquece que o homem também ‘aborta’ quando se nega a registrar o próprio filho. A infidelidade feminina ainda é mais condenada socialmente do que a masculina. Ainda causa estranheza a mulher maior de trinta anos solteira e sem filhos… Pode parecer que avançamos. Sim, avançamos. Mas o trabalho ainda não acabou”.
Mulheres ainda lutam pela equiparação salarial
De acordo com Alexandre Bahia, professor de Direito Constitucional do Ibmec/MG, no Brasil, as conquistas constitucionais em relação aos direitos das mulheres basicamente começaram com a Constituição de 1988. Foi a primeira vez na história do país que uma Constituição colocou homens e mulheres em igualdade de direitos. E na constituição, isso está definido expressamente, inclusive no que se refere ao casamento. De acordo com a Constituição de 88, homens e mulheres também são iguais dentro do casamento.
Para a professora Marcela Rodrigues Souza Figueiredo, essa foi a maior reforma ocorrida no direito de família e, consequentemente, no direito das mulheres. Isso porque ela reconheceu a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, sendo o planejamento familiar de livre decisão do casal. Ainda impôs a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.
A partir daí, passa-se a discutir a violência sofrida pela mulher dentro de casa, são criadas as delegacias especializadas, até chegar na lei Maria da Penha. Entretanto, esta última ainda demorou a ser aprovada no Brasil. É bom lembrar que ela só foi aprovada por pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Naquela época, o processo da Maria da Penha já corria na justiça há muitos anos e não chegava ao fim. Mas quando o caso chegou até a comissão, o Brasil sofreu uma pressão pública internacional para que o caso se resolvesse e, só assim, foi o processo para a aprovação da Lei evoluiu.
Entretanto, mesmo com esta soma de avanços que representam a criação da Lei Maria da Penha e a criação de delegacias especializadas, parece que o Brasil está muito longe da igualdade.
Para Alexandre Bahia, professor de Direito Constitucional do Ibmec/MG, “a diferença entre os salários de homens e mulheres ainda existe. Na iniciativa privada, mulheres com a mesma formação de homens chegam a ganhar apenas 70% do que é pago aos homens”.
O professor completa dizendo que a consolidação da democracia tem ajudado bastante nessa questão. Porém, a mudança de cultura é algo de longo prazo. Especialmente o Brasil ainda peca muito com relação a esta isso. Quando olhamos o Índice de Igualdade de Gêneros do nosso país, que é um dos indicadores do IDH (índice de Desenvolvimento Humano), o número ainda é muito baixo. O IDH do Brasil poderia ser bem mais alto, comparado até aos ditos países de primeiro mundo, se tivéssemos a igualdade de gêneros, que seja um pouco maior.