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A morte do RH

Ao afirmar que os recursos humanos "morreram", futurista Carlos Piazza entende que, na Era Digital, humanos não são mais recursos e, sim, estratégia

de Jussara Goyano em 20 de outubro de 2022
futuro do trabalho Divulgação

Com formação original em Comunicação, Carlos Piazza enveredou por uma carreira consultiva e acadêmica, ajudando empresas e pessoas a compreender as ressignificações necessárias diante dos avanços do mundo digital.  É atualmente professor de cursos livres da Casa Educação, professor de pós-graduação em instituições diversas como PUC e HSM, além de Ted Talker, integrante do Millenium Project, embaixador no Brasil do Teach the Future, pela Houston University. Em entrevista exclusiva à Melhor RH, ele explica quais são os perfis que se encaixam entre as soluções para os desafios atuais dos recursos humanos, fazendo um grande alerta ao ecossistema de gestão de pessoas: deixem às máquinas o que é das máquinas e ao humano o que é do humano, com o seu potencial analítico e seu pensamento estratégico, capaz de fazer as perguntas certas e resolver problemas complexos, dentre outras possibilidades que nos afastam de um modelo laboral fordista e ainda pautado na Segunda Revolução Industrial. Piazza decreta a “morte” dos recursos humanos ao entender que humano não é mais “recurso” como no modelo produtivo do século passado. Veja, a seguir, como ele descreve o profissional do futuro, sob a égide das constantes transformações tecnológicas.

Estamos formando profissionais com um olho no passado, sem muita noção do presente e cunhando-os como profissionais do futuro. O que podemos fazer sobre isso e quais são os desafios embutidos nessa afirmação?
Exatamente. A gente continua formando profissionais para o mundo do fordismo. Continuamos ainda a formar profissionais para a Segunda Revolução Industrial, quando estamos pisando a quinta, o “vale gigantesco”. Segunda Revolução Industrial foi a chegada da eletricidade sobre as linhas de produção… Nós estamos entrando na Quinta Revolução Industrial, com a presença de muita tecnologia digital. Temos muitos dados e a gente consegue capturar cada vez mais… Essa é a passagem. Não estamos mais produzindo bens. Existe um deslocamento gigantesco e a escola ainda treina pessoas para o mundo do fordismo (e uma empresa fordista só tem olhos para o ROI e nada mais). As empresas fordistas se estruturam na visão de curto prazo, todas elas são “curto-prazistas” patológicas. (E a gente aqui, que trabalha na cadeia de fornecimento de muitas coisas para as grandes empresas, vê que elas pensam que nós somos extensão delas. Então, tudo é para ontem, tudo tem que ser muito rápido. É um curto-prazismo patológico, não é?) Outro índice de que a gente está numa empresa fordista é que elas são organizadas por hierarquias e especialidades. Olhando só o investidor. E isso quando a gente está num segmento em que a gente tem que olhar para aquele ambiente trans multi-stakeholder. Então eu trabalho para a sociedade, hoje, não para o meu acionista. Ele é importante? É. Mas, as premissas corporativas são de que eu tenho de ter uma visão ampliada de como isso [o trabalho] afeta a humanidade.

Sobre esse curto-prazismo, qual é o impacto dessa visão, para além do modelo fordista? Ela também é uma marca desta era…
A aceleração que a gente está vivendo é terrível e vai só se agravar. O efeito prático da aceleração é um encurtamento do tempo. A pandemia trouxe uma outra dimensão, mas de alguma maneira, parece que a gente está sempre devendo alguma coisa.

“Nunca mais eu posso confundir humano como recurso, quando eu tenho muita tecnologia e eu sei que eu não tenho paridade para ser digital”

A gente começa a perceber que não tem braços, mais, para muitas coisas que são requeridas. Tenta trabalhar com muita tecnologia, nos forçando à velocidade delas, e nós estamos completamente deslocados, porque não vamos ter nunca essa capacidade. Nunca. Aí eu faço aquela crítica velha, que você deve ter ouvido falar. Eu fui no Conarh, há pouco tempo, malcriadamente, dizer que o RH morreu.

Como assim, o RH morreu?
Porque eu não posso mais usar humano como recurso, porque eu tenho muita tecnologia. Então esse estiramento faz com que a nossa posição tenha de ser completamente outra. Eu tenho, então, que ir para uma confluência na qual as minhas capacidades humanas são mais requeridas. Por exemplo, ainda se trabalha para produzir dados, com aquela porcaria do Excel… Não tem sentido. Você pode ter informações de forma automática, em tempo real, sem precisar usar humanos… Pessoas pensam dados de maneira diferente. Quando você junta tudo ou não conecta com o outro ou não converge para o outro. Fechar isso é tarefa para máquina não é tarefa para gente. Então existe um estiramento, daquilo que é tecnologia abundante, de um lado, e uma visão fordista, do outro. E as duas coisas são “lego” que não se encaixa. Não se encaixa, e cada dia que passa fica pior.

“Humanos fazem lindamente o que a inteligência artificial não fará: análise crítica e análise da ambiguidade”

Sim, hoje há uma porção de soluções de people analytics, por exemplo, falando basicamente dos processos de RH, em que um dos principais gargalos é produzir dados. Nas empresas que aplicam, contudo, nem sempre há a expertise para utilizá-las em toda sua potencialidade. Percebe-se que não é uma questão técnica da área, mas uma dificuldade estrutural com um nível mais alto de tecnologia…
Elas ficam fazendo aquelas coisas que são mais visíveis. “Agora eu tenho um algoritmo que mostra se a pessoa tem propensão a pedir demissão”. Claro que, se ela tem propensão a pedir demissão, é porque alguma coisa a empresa está fazendo para ela, não é? As pessoas olham, nessas ferramentas, o efeito reverso, não olham o efeito propositivo.

Mas essa evolução das tecnologias faz duas coisas horrorosas com a gente: primeiro, a tecnologia ultrapassou, e muito, o índice de adaptabilidade humana. Ela está muito além da minha capacidade de adaptabilidade e isso é um ponto muito sério. O outro é um pouquinho pior, porque as tecnologias também ultrapassaram, e muito, o próprio intelecto humano. Então existe um estiramento muito grande em que não, a gente não consegue competir com as máquinas. Nós temos terrenos convergentes, mas nunca mais eu posso confundir humano como recurso, quando eu tenho muita tecnologia e eu sei que eu não tenho paridade para ser digital.

Como formar, então, dentro dessa digitalização, de toda essa nossa incapacidade de lidar com isso, o profissional do futuro?
Primeiro, compreendendo quais são os papéis, porque se eu não conseguir compreender os papéis, eu não consigo dar paridade para isso. Então quando eu tenho que imaginar a convergência homem-máquina, que é o espelho da Quinta Revolução Industrial, eu tenho que imaginar aquilo que a Indira Gandhi já falava, que o poder de você fazer perguntas é a base de todo o progresso. Se eu tenho humanos que deveriam fazer perguntas, eu não entendo por que ele é confundido como um recurso.

Tenho que imaginar que quando eu tenho muitos dados, eu não posso mais confundir humano com máquina. Nem ao contrário, não é? Humanos fazem lindamente o que a inteligência artificial não fará: análise crítica e análise da ambiguidade. Este mundo é futurista e humanista. Ao mesmo tempo, tem muito tech, mas tem muito touch, também [referindo-se às capacidades e emoção humanas]. É muita tecnologia de um lado, mas do outro lado é muita filosofia e, teoricamente, para as empresas isso é um segmento absolutamente alienígena. Porque elas não pisam o território da filosofia.

“Precisou de uma pandemia para cair a ficha: viver, trabalhar e aprender é uma coisa única”

Quais são os agravantes desse cenário num futuro próximo?
A gente está indo a passos largos para um ambiente que nós desconhecemos na indústria, que é a customização em massa e a personalização extrema.

As empresas não pensam sobre isso porque o foco está na produção. Porque o mundo é globalizado, tem que produzir muito, tem que ter produção massiva, para consumo massivo, para canais massivos, para comunicação massiva, para consumidores massivos.  Mas o volume de dados que nós temos hoje faz com que eu comece, então, a personalizar cada vez mais aqui. Acho que vai trazer para a gente um nível de customização absurdo e, é claro, que quando eu consigo fazer muitas coisas que têm muito a sua cara, daqui a pouco você não vai se contentar em ter menos. E a tecnologia agrava isso porque cada vez mais eu vou ter que atender a coisas muito específicas para você, como é que eu faço uma indústria hoje que produz em massa, pensar em customização?

E isso se reflete também internamente nas empresas, não? Porque o colaborador também espera uma experiência cada vez mais personalizada, com um fit ideal às suas expectativas de carreira e de vida…
Então… Em primeiro lugar, quando a gente olha o profissional do futuro, ele não faz divisões de personas. O que significa isso? Precisou de uma pandemia para cair a ficha: viver, trabalhar e aprender é uma coisa única. Só que, na realidade, o que que a gente fez com isso? Desde o fordismo, o que a gente está fazendo é separar a nossa personalidade em três personas completamente diferentes. E olha o agravante: a gente criou o código de vestimenta para cada um deles. Para trabalhar, beber, para aprender… Viver, trabalhar e aprender é uma conjunção única. Eu não sei muito bem se eu vivo, porque eu trabalho, ou se o meu trabalho é expressão da minha vida.

“Você não foi pago para pensar, mas para fazer igualzinho como a gente fala. Essas pessoas vão morrer na escola de adestramento de focas”

Ganhamos essa espécie de liberdade na pandemia mas, ao mesmo tempo, ainda estamos limitados, ainda há empresas esperando de nós essas personas e ainda atuando sob modelo de comando e controle fordista, que de certa forma não nos encaminha para essa realidade mais analítica de nosso papel, não? Stephen Hawking sempre pontuou que os humanos são muito limitados pela lenta evolução biológica. A gente demorou no momento em que existe um estiramento em que humanos têm de voltar para aquele núcleo de onde eles nunca deveriam ter saído, que é o de ser tão simplesmente humanos. É uma discussão filosófica isso… O controle, ele é tão simplesmente o extremo dominador da ordem, ele é impositivo. Ele paralisa a inovação, e é claro que a gente fala que ele é o padrão dominante hoje, porque a gente tá falando do fordismo. Eu tenho um mundo regular, o mundo previsível, o mundo altamente cheio de padrões, que ele é prático, porque todo mundo fica esperando que o outro diga o que quer que a gente faça, mas tem um excesso de rigidez, que poda a imaginação e que também impede a fertilidade. Você tem que desenvolver tarefas, você tem que entregar tarefas. Você não foi pago para pensar, mas para fazer igualzinho como a gente fala. Essas pessoas vão morrer na escola de adestramento de focas. Elas vão bater palminha e vão ganhar um amendoim. As pessoas fazem um monte de coisas para ganhar um bônus. É igual a elas estarem numa escola de adestramento de focas.

Como sair desse modelo de adestramento, em termos de formação, de educação, de treinamento? Os profissionais que vão formar essas pessoas também estão nesse modelo…
Outro dia eu dei bronca numa empresa — olha só, a petulância. Porque falaram assim, que na realidade “a gente tem aqui nossos colaboradores”. Eu falei para fazer o favor de parar de chamar de colaborador, porque, primeiro, eles não colaboram em nada. Eles só fazem o que você manda, então eles não colaboram. Eles não estão prontos para isso. Segundo, o que você precisa não é de colaboração. Então eu gostaria, por favor, de trocar o nome disso para “aceleradores”, “transgressores”, eu deveria ter “aceleradores transgressores”. Isso significa que eu não posso mais ter esse pessoal de dados. Como a gente fura isso? Sendo polímata.

E aí chegamos naquele momento em que pedimos para você explicar um pouquinho para nós o que é um nexialista, o que é um polímata, um futurista estratégico e o que é um darwinista digital, os perfis dos quais você sempre fala, e como eles se encaixam nesse novo cenário.
Ser um polímata é a chave do destravamento da versatilidade humana. Eu tenho que enxergar o impacto completo não só sob a luz da minha especialidade. Quando a gente olha a polimatia, está enxergando a cadeia de impactos como um todo. Não é caótico? Porque isso significa que eu tenho que olhar o que está do outro lado da ordem e do controle. Porque eu tô falando da criatividade, da incerteza que está no caos. Da espontaneidade, do improviso, mas também está lá o surgimento do novo, porque ninguém sabe que o caos não é só uma bagunça, uma balbúrdia. O caos é o Deus primordial da mitologia grega. É o grande caudal da fertilidade.

Tudo isso é o mundo do caos. Então por que eu odeio o caos se é lá onde as coisas nascem? Então, se eu estou falando que a gente está em um novo ciclo de renascimento, eu deveria me plantar no caos, não no controle. Já o nexialista liga os pontos, dá nexo aos vetores. A polimatia é a base, e o nexialismo é o que liga os pontos entre todas as especialidades. Mas não adianta ser ou um ou outro… Tem de ter os dois. Há o futurista estratégico, com capacidade para se adiantar aos acontecimentos. Futuristas não perguntam “como?”, perguntam “e se?”. Então, profissionais do futuro vão perguntar “e se eu fizer?”, “e se eu não fizer?”. Então a pergunta que futuristas fazem é “e se?”, e esse é o mundo da construção de cenários, e não o “como?”. Futurismo é sempre regenerativo. Por último, há o darwinista digital – sobre a adaptabilidade possível, que se pergunta como eu crio valor, onde tudo muda o tempo inteiro.

Existem empresas que conseguem trabalhar bem esses conceitos todos? Um modelo que favorece esse florescimento de polímatas, nexialistas, darwinistas digitais e futuristas estratégicos?
Existem hoje empresas próximas desse formato. São empresas holacráticas, que não têm hierarquia nenhuma. Sabe como elas trabalham? Com sprints ultrápidos. Juntam o melhor da diversidade – lembrando que a inteligência do futuro é conflito, mais uma capacidade dos profissionais do futuro que eles ainda não desempenham. As empresas odeiam o conflito, porque elas pensam que é confronto. O “comando e controle” atrapalha, porque a visão do chefe é o que prevalece. De verdade, precisamos de líderes, mas líder, daqui para frente, não é o cara que ocupa o cargo do chefe e que manda no “comando e controle”. Ele lidera na frente, entende de tecnologia, tem diversas habilidades. Essa é a maior questão que a gente tem aqui hoje. Eu não encontro ninguém que faça isso, é uma coisa alienígena para os líderes.

Por outro lado, não há uma inclinação do ser humano para esse esquema de comando e controle, mesmo sem uma hierarquia oficial? Ou fomos moldados?
Isso é fordista… Fomos moldados, porque na realidade, o que acontece,  principalmente no Brasil, que é um país muito impactado pela pelo movimento migratório, nós tivemos muitos imigrantes de muitos lugares do mundo que vieram no movimento pós guerra. Se você for olhar, a gente teve uma sociedade lá na geração baby boomer – e aí tem que olhar a geração a geração — em que o drive de educação de crianças, era sobrevivência. Eu sou baby boomer, eu cresci sob a égide daquilo que os meus pais falavam, que eu tinha que ser alguém na vida. Pela óptica de quem viveu o pós-guerra, com um ciclo de escassez violentíssima. 

Para um líder de recursos humanos, além da provocação de que o RH morreu (risos), o que gostaria de deixar como mensagem? 
Eu tenho sempre insistido que a única obrigação das pessoas, de verdade, é ser feliz. Tenho colocado isso com muita potência, porque na realidade eu não tenho visto tantas estruturas tão eficientes em deixar tanta gente triste quanto as empresas.

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