Após quase um ano do início da crise sanitária gerada pelo novo coronavírus, a saúde mental ganhou protagonismo no dia a dia das pessoas e tem chamado a atenção das organizações. Mesmo antes da pandemia, dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) já apontavam o Brasil como o país mais ansioso do mundo, com cerca de 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população) convivendo com o transtorno.
A primeira fase de uma pesquisa do Ministério da Saúde, que reuniu informações sobre a situação psicológica dos brasileiros entre 23 de abril a 15 de maio de 2020, revelou que a ansiedade foi o transtorno mais presente no período. Foi verificada uma elevada proporção dela (86,5%); a presença de transtorno de estresse pós-traumático (45,5%); e certa quantidade de depressão (16%) em sua forma mais grave. A amostra preliminar da primeira fase é resultado da análise de 17.491 indivíduos com idade entre 18 e 92 anos.
Outro estudo feito com trabalhadores de serviços essenciais do Brasil e da Espanha também em abril e maio do ano passado mostra que sintomas de ansiedade e depressão afetaram 47,3% desse grupo. Entre os afetados, mais da metade (27,4% do total de entrevistados) sofreu de ansiedade e depressão ao mesmo tempo. Além disso, 44,3% abusaram de bebidas alcoólicas e 42,9% sofreram mudanças nos hábitos de sono.
O levantamento foi feito com quase 23 mil pessoas e foi coordenado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com a contribuição das universidades de Valência, na Espanha, e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), além da atuação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Para discutir sobre questões ligadas à saúde mental nas empresas e o que elas têm feito e ainda podem fazer para cuidar de seus colaboradores, a MELHOR entrevistou a Dra. Ana Carolina Peuker, psicóloga e CEO da Bee Touch, startup de saúde mental. Ela é criadora da Avax, a primeira plataforma de avaliação psicológica do Brasil, e pós-doutora em Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (UFRGS) e Psicologia da Saúde (UNISINOS).
Peuker também foi professora do Instituto de Psicologia da UFRGS e atuou como pesquisadora e docente no Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da universidade por mais de dez anos. Atualmente, a especialista é membro do grupo de trabalho de enfrentamento à Covid-19 da SBP (Sociedade Brasileira de Psicologia).
Atualmente você atua mais como psicóloga ou está se dedicando integralmente a Bee Touch?
Eu atuo como psicóloga no sentido de protagonizar a aproximação entre psicologia e inovação. A psicologia ainda é um campo bastante conservador, então eu uso toda a minha inserção acadêmica e os relacionamentos que construí para promover a necessidade de trabalhar de maneira digital e trazer a inteligência para a análise de dados na área.
Como as empresas podem descobrir se os seus colaboradores estão necessitando de assistência psicológica?
Uma maneira simples de começar é falar do tema da saúde mental dentro da organização. Esse já é um grande passo que favorece na redução do estigma e no aumento da busca por ajuda precoce porque às vezes o funcionário vive em um ambiente corporativo hostil em relação à demonstração de fragilidades e necessidades emocionais, onde essas questões seriam parte da vida pessoal e não do trabalho.
Isso acaba fazendo com que muitos quadros psicológicos se agravem, já que o indivíduo não encontra a abertura necessária por não ser um ambiente psicologicamente seguro para que ele se exponha e revele a sua vulnerabilidade. Acredito que com a crise pandêmica o RH se abriu muito para esse tema, bem mais do que era. A possibilidade das pessoas poderem pedir ajuda tem que estar no dia a dia organizacional.
Nós temos experimentado um momento de grande transformação digital e ela já modificou o nosso cotidiano. Na área da psicologia, porém, ela vem ocorrendo a passos lentos.
Hoje os gestores não podem deixar de considerar a possibilidade de utilizar a tecnologia para rastrear indicadores de riscos de saúde mental de maneira precoce. Mais do que fazer pesquisa, o importante é consolidar esses indicadores e acompanhar de maneira sistemática porque o que ocorre comumente são ações “por espasmos”, pontuais, seja no janeiro branco ou no setembro amarelo.
O ideal é que haja um conhecimento técnico e científico mais avançado, mas nada impede que se criem questionários validados, façam levantamentos e coloquem os resultados no Excel. No entanto, hoje temos tecnologias mais desenvolvidas e por isso a minha provocação é nesse sentido.
Eventualmente, as empresas até levantam indicadores das pessoas que estão deprimidas, mas quem realiza essas pesquisas não são indivíduos que detém conhecimento técnico a esse respeito. São profissionais que estão no dia a dia do RH, mas que não possuem uma formação que permita analisar adequadamente os dados para a realização de previsões.
O setor pode buscar ajuda e fazer um trabalho muito qualificado, pois existem empresas especializadas nesse rastreio. Uma grande medida que o departamento pode adotar é levar a tecnologia para a gestão dos indicadores. Atualmente esse processo ainda é muito artesanal, manual.
Há uma preocupação das organizações com a prevenção ou elas trabalham de forma mais
reativa quando os problemas começam a surgir? Quais são os obstáculos existentes
nas empresas para adotar uma política de saúde preventiva?
Elas atuam normalmente de forma muito reativa, “apagando incêndios”, e isso gera custos desnecessários. A organização gasta muito mais agindo de forma reativa.
Há uma questão cultural que também não é só da empresa, mas da sociedade. Historicamente a saúde mental sempre esteve atrelada à doença, à loucura, a algo repleto de estigma e preconceito. Isso fez com que o tema fosse sempre tratado como um grande tabu, o que prejudica bastante a abordagem de uma maneira correta.
Outro ponto é que há um “analfabetismo emocional” generalizado. A gente aprende na escola sobre várias doenças, como a doença de Chagas, mas não aprendemos sobre transtorno de humor bipolar, sobre alcoolismo, e a probabilidade de uma doença ligada à saúde mental acometer alguém talvez seja até maior do que a de se ter Chagas.
O que eu costumo dizer é que o tema da saúde mental precisa estar no nosso cotidiano. Com a crise pandêmica isso emergiu e todo mundo sentiu na pele o que era não dormir bem, ter medo e se sentir vulnerável. Não deu para “cobrir o sol com a peneira”.
Que benefícios as companhias podem colher dessas ações de combate aos transtornos psicológicos?
A redução da sinistralidade e o aumento da produtividade, satisfação e consequentemente do engajamento dos colaboradores. Geralmente pensamos em retorno sobre o investimento, mas nesse caso deve-se falar de uma métrica mais intangível, que é o valor sobre o investimento.
Um clima organizacional mais saudável faz com que os trabalhadores se sintam cuidados, mais felizes e satisfeitos no seu ambiente de trabalho, e experimentem um ambiente psicologicamente seguro.
Também ocorre a diminuição do absenteísmo e do presenteísmo, que é quando o trabalhador não apresenta seu nível máximo de performance. Por exemplo: se ele está com uma dor ou preocupação crônica, ele não irá exibir seu melhor desempenho.
Após a empresa ter identificado os problemas presentes nas suas equipes, que medidas ela pode adotar para ajudar seus colaboradores?
Primeiro tomar medidas no âmbito psicoeducativo de abordar o tema, ajudando as pessoas a identificarem os sintomas de maneira precoce. O que acontece geralmente é que as pessoas só vão se dar conta de que estão com problemas psicológicos quando já se encontram muito estressadas ou perto de uma Síndrome de Burnout, por exemplo.
No momento em que essas pessoas passarem a ser educadas em relação às questões emocionais, elas terão condições de avaliar antecipadamente se devem tomar alguma medida em relação a isso. Muitas vezes os indivíduos estão com um sintoma físico, uma gastrite ou dor crônica, por exemplo, mas não encontram-se suficientemente informados de que aquilo pode estar relacionado a um problema psicológico.
Outra iniciativa é buscar benefícios relacionados à saúde mental, porque muitas vezes a organização se preocupa muito com as questões ligadas ao físico e desconsidera que a saúde deve ser abordada de maneira integral. Não é bem-estar físico ou mental, mas ambos. Um não existe sem o outro, portanto é preciso trabalhar essa perspectiva estimulando uma abordagem completa.
As empresas podem também realizar ações relacionadas ao bem-estar psicológico, trabalhar de maneira preventiva esse âmbito, envolvendo as competências socioemocionais dos colaboradores. Normalmente, não se aborda as questões emocionais e só se fala de saúde mental em termos de doença, como o Burnout, a depressão, o uso de drogas, quando na realidade ela pode ser abordada por um prisma preventivo.
O que a tecnologia pode fazer para ajudar as organizações nesse trabalho psicológico com os colaboradores?
Fundamentalmente o rastreio precoce de risco. Com ferramentas de machine learning e utilizando mecanismos de business inteligence é possível criar painéis analíticos que revelam, por exemplo, quais são as áreas, as filiais, os centros de custo, que apresentam mais riscos psicossociais e que fatores estão atrelados a isso.
Dessa forma, a empresa pode ter uma análise bastante precisa de quais elementos estão atrelados a esses riscos e ter um diagnóstico expressivo das necessidades dos funcionários para desenvolver ações sistemáticas que atuem de maneira preventiva em relação a esses fatores de risco.
Algumas soluções tecnológicas que podem ajudar no monitoramento, como dispositivos móveis que enviam dados do indivíduo diretamente a uma plataforma de saúde, não poderiam acabar ferindo a privacidade das pessoas?
Na verdade, essas medidas não são compulsórias. A pessoa deve desejar participar desse tipo de iniciativa fornecendo seus dados. Em termos corporativos, isso sempre é tratado de maneira anônima, então os gestores não têm acesso a esses dados.
A empresa pode desejar criar um programa de tratamento psicológico para colaboradores deprimidos e não necessariamente a equipe de saúde terá que identificar as pessoas. Quando falamos em levantamento populacional, eles são sempre anônimos.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) deve ser respeitada. Ninguém pode coletar informações sem o consentimento do indivíduo, sem explicar as razões dessa coleta e qual será a finalidade da análise desses dados. É preciso ter todo cuidado nesse sentido.
Que ações os funcionários podem fazer no dia a dia para melhorar a sua saúde mental?
O mais importante é ficar atento aos limites entre vida pessoal e trabalho e buscar ter condutas preventivas em relação ao bem-estar psicológico, fazendo pequenas pausas ao longo do dia, estabelecendo contato com coisas que lhe fazem bem, procurando ter um hobby.
É importante ter um estilo de vida mais saudável e ser ativo em relação à sua própria saúde, porque muitas vezes as pessoas são passivas e não tomam nenhuma ação para mitigar os fatores de estresse.
O que é essencial é que elas entendam que o ambiente de trabalho das empresas não é completamente responsável pelo estilo de vida delas, então os colaboradores precisam ser ativos na busca do seu bem-estar físico e mental, reconhecendo seus próprios limites, sabendo dizer “não” e buscando ajuda quando necessário. (por Raul Galhardi)