Entrevista

Com a pandemia, entramos na casa das pessoas

Para Cinthia Bossi, diretora de RH da Syngenta, tecnologia aproximou empresa e colaboradores e permite um conhecimento maior do que os motiva e mobiliza

de Redação em 13 de agosto de 2020

Em meio a tantas incertezas, o que fazer? Experimentar, testar caminhos, modelos, ideias. No meio da pandemia da covid-19, essa é uma das constatações que Cinthia Bossi, diretora de RH da Syngenta, especializada em sementes e produtos químicos voltados para o agronegócio, faz. E não apenas essa, que pode se traduzir em caminhos diferentes para manter a conexão e o engajamento dos colaboradores em dia, sejam eles das áreas administrativas ou aqueles que ficam no campo. Para a executiva, aprendemos ser possível passar para o mundo digital, virtual, coisas que até então pensávamos serem apenas possíveis presencialmente.

E a reboque dessas mudanças trazidas pela transformação digital mais acelerada foi possível entrar na casa dos colaboradores, por meio de happy hours, aulas de yoga, de mindfullness, e de reuniões de trabalho também. “Conhecemos um pouco a forma de viver daquelas pessoas, daquilo que elas gostam. Isso diz muito sobre quem somos como pessoas”, diz Cinthia. E graças à tecnologia. Resultado disso? Uma possível melhora da experiência do empregado, pois agora fica mais fácil entender e identificar o que cada um mais deseja e valoriza. E nesse ponto é sempre bom reforçar o papel da liderança empática, aquela que sabe escutar, aquela que não segue a cartilha do “comando e controle”. Até porque, neste momento, aprendemos a questionar os modelos existentes.

A pandemia acelerou o processo de transformação digital nas empresas?

Acredito que tivemos experiências em realidades diferentes. Algumas empresas que talvez estivessem menos preparadas, que não tinham ainda uma política mais embrionária de trabalho remoto, precisaram, de alguma forma, encontrar mecanismos para acelerar esse processo e de se organizar para dar continuidade ao negócio. Na Syngenta, isso foi muito simples. Era um processo que já tínhamos estabelecido; home office já era uma política para a empresa. Óbvio, foi díficil para todo mundo operar 100% nessa modalidade porque não é o nosso modus operandi, mas de alguma forma já tínhamos a preparação tecnológica para que isso acontecesse – e a preparação das pessoas também, o que nos permitiu, de fato, manter as atividades, tanto as administrativas quanto as de campo, que precisavam também se estabelecer em outro formato de conexão. Para o campo, essa é uma mudança importante; ainda temos uma valorização muito grande da relação pessoal. Lá é preciso acompanhar os estágios e o progresso de uma plantação, o que faz com que essa relação seja próxima e pessoal. Tivemos de nos reinventar nesse sentido. [A pandemia], de alguma forma, fez com que pudéssemos testar modelos diferentes de trabalho e também de nos testarmos nesses modelos, de testarmos nossa capacidade de manter conexões e de sermos criativos nelas. E também foi interessante ver como nós nos descobrimos na tecnologia. Por exemplo: todo mundo usava o Zoom, mas agora estamos experts. São inúmeras funcionalidades da tecnologia que sempre estiveram disponíveis, mas que não tínhamos de utilizar e, no entanto, com a necessidade, acabamos desenvolvendo uma habilidade muito maior. [A pandemia] acelerou, no mínimo, a nossa capacidade de aprender mais sobre esse mundo digital e de usar suas plataformas na sua potencialidade máxima.

Dizem sempre que a necessidade é a mãe da invenção, não?

Nesse processo de reinvenção, vem a questão da inovação, de como as pessoas trazem a criatividade de uma forma muito espontânea. Vimos muita coisa criativa acontecendo ao redor das ferramentas tecnológicas. Nas conexões que conseguimos manter, por exemplo, tivemos happy hours com nossos colaboradores e momentos em que cozinhávamos juntos, a distância. Tivemos um programa bem interessante no qual as pessoas podiam mostrar virtualmente seus conhecimentos e habilidades, como aulas de yoga, sessões de mindfullness. Também aprendemos que era possível realizar virtualmente coisas que, antes, acreditávamos que só eram possíveis presencialmente. Esse também é outro efeito positivo que vem com este momento em que todo mundo precisou se reinventar e recriar conexões.

Esses exemplos, como aulas de yoga, de uma certa forma, são a expressão do que é humano que é valorizado e destacado pela tecnologia?

Exatamente. Outra coisa que, com a tecnologia, tornou-se possível foi poder entrar na casa das pessoas. Esse é outro aspecto humano muito importante e muito sutil. Fizemos parte daquela casa, daquela dinâmica. Vimos o filho do colaborador passando atrás da câmera, o marido… conhecemos um pouco a forma de viver daquelas pessoas, daquilo que elas gostam. Isso diz muito sobre quem somos como pessoas. E isso aconteceu por meio da tecnologia.

E essa proximidade maior pode ajudar o RH a melhorar a experiência do empregado?

Não há dúvida. Outro ponto interessante deste momento é que, quando temos tantas incertezas, podemos experimentar muito. Essa oportunidade de testar tem mostrado para nós alguns caminhos que não conhecíamos. As experiências que temos feito mostram exatamente coisas que conectam as pessoas, que as mobilizam. Um dia, por exemplo, às 7h30, fizemos uma sessão sobre carreira e desenvolvimento. Tivemos 250 pessoas participando. Começamos a descobrir mais sobre as pessoas, os interesses delas, os assuntos que, de fato, as mobilizam dentro de um espaço de experimentação importante. Sim, é um momento de descoberta do que é essencial para os nossos profissionais para que a experiência deles possa ser cada vez melhor e para que possamos fazer aquilo que mais faça sentido.

Especificamente para RH, como a tecnologia tem ajudado?

Estamos em uma fase inicial de onboarding mais online. E a pandemia acelerou esse processo. Precisamos, realmente, de transformar nosso onboarding em um processo muito mais digital e virtual. Continuamos trazendo pessoas para a organização, mesmo neste período. São profissionais que não podem estar em nossos escritórios, mas dos quais precisamos remotamente. Construímos uma plataforma de onboarding digital que tem funcionado muito bem. Além disso, tínhamos alguns processos que ainda eram burocráticos que exigiam documentação [física], e hoje conseguimos transformá-los em processos 100% online, sem a exigência de documentação física. Todos esses movimentos de simplificação e automação, de fato, foram muito acelerados. E este momento mostrou que é possível quebrar paradigmas. O que antes achávamos que nunca poderia ser diferente, na hora em que era preciso mudar, descobrimos como torná-lo diferente. É um processo que está só começando. Estamos aprendendo que é possível questionar os modelos; é óbvio que ainda há muita regulamentação, às vezes não depende apenas de nós oferecer uma experiência melhor para o colaborador, mas aquilo que temos conseguido fazer está sendo muito bem produtivo.

É um processo que está só começando. Estamos aprendendo que é possível questionar os modelos

E no que a tecnologia ainda pode ajudar mais?

Reinventamos a forma de como fazer uma convenção de vendas, um treinamento no campo… conseguimos reinventar muita coisa. Mas há questão tecnológica que ainda não vi bem implementada. É a retroalimentação em eventos muito grandes. Esses eventos tendem a se transformar em eventos de uma só via. Falta o aplauso, falta enxergar as pessoas. A tecnologia, apoiando eventos maiores nessa retroalimentação, foi algo que ainda não conseguimos experimentar. Parece que fica faltando um “pedaço”. Além disso, é preciso simplificar algumas plataformas. Há muitas coisas, em termos de experiência do usuário, que precisam ser revistas. Algumas plataformas exigem muitos cliques, outras não são intuitivas. Isso faz com que as pessoas tenham mais dificuldade em aderir à tecnologia. Creio que o mundo dos aplicativos ainda é um mundo interessante, com muitas possibilidades, mas ele pode correr o risco de criar uma infinidade de opções e as pessoas podem ficar perdidas. Uma das coisas que considero que vai ser crítica para essa continuidade de desenvolvimento digital é a capacidade de escutar por parte de quem desenvolve a tecnologia, de entender a necessidade do cliente, de poder endereçar essa necessidade a partir da tecnologia.

Quais são os obstáculos para que essa transformação digital ocorra em sua plenitude? Falta acesso à tecnologia? Liderança ainda é analógica?

Há um pouco de tudo isso. Também vivenciamos um pouco dessas experiências. Vemos que a internet não tem a mesma qualidade em todos os lugares do país, o que acaba se tornando uma barreira em alguns momentos. Falamos dos aplicativos, mas não são todos os celulares que comportam muitos deles. E como você lida com isso? Há, também, a questão do domínio da tecnologia. Observamos muito isso no campo. Temos grandes iniciativas digitais no campo e o que mais escutamos de nossos clientes é justamente isso: não adianta ter a tecnologia, a grande dificuldade que eles têm é ter alguém que possa usar essa tecnologia e transformar dados em informação útil. Temos muitos dados, muitas informações, mas ainda há um gap de competências das pessoas que acessam todo esse conteúdo para transformá-lo em algo que ajude na tomada de decisão. Dentro da empresa, já conseguimos acelerar muito esse desenvolvimento, transformar muito essa cultura.

Como acha que vai ser o mundo depois dessa pandemia? E o RH?

Difícil imaginar. Existem alguns mitos. Toda mudança se sustenta em alguns aspectos e retroage em outros. Também vamos viver um pouco disso. É possível que nos sentiremos talvez até frustrados ao ver algumas coisas voltarem ao estado anterior, quando tudo isso passar. Mas acredito que muitas coisas vão continuar. Uma delas é a democratização da informação. O fato de ser digital possibilita que mais pessoas acessem uma informação que, antes, estava restrita a um grupo pequeno, em uma sala. A democratização da informação é algo que faz sentido ser sustentada. Como RH, precisamos assegurar que as pessoas tenham esses acessos porque percebemos que faz sentido. Mais pessoas conectadas com aquilo que é importante para o nosso negócio, com a essência do nosso negócio, é importante e vai ser parte do futuro. Além disso, temos a questão da flexibilidade, e sobre ela temos discutido muito. Não acredito que um único modelo sirva para todos. Ou seja, não vamos ter 100% home office, nem 100% não home office. O caminho vai ser o da flexibilidade, aquele que faça sentido para as pessoas e para as empresas, com múltiplos modelos. Teremos de encontrar um espaço para fazer com que a legislação caiba nesses modelos, pois creio que vamos ter pessoas que talvez prefiram trabalhar menos horas, outras que queiram trabalhar de casa, algumas que desejem distribuir a jornada de outra forma. Serão situações que, hoje, ainda contam com algumas amarras legais para serem oferecidas. Outra questão que temos discutido muito é sobre o modelo de liderança. Acreditamos na liderança empática, que é capaz de ter uma escuta ativa para poder, justamente, endereçar a flexibilidade. O modelo do comando e controle não vai mais funcionar nesse novo futuro. Os líderes que ainda têm algum apego a esse modelo precisam, rapidamente, se reinventar e aprender a navegar nesse ambiente mais ambíguo.

Os líderes precisam, rapidamente, se reinventar e aprender a navegar nesse ambiente mais ambíguo

E quais as competências que vão fazer a diferença para o profissional de RH?

Trabalhamos neste momento sobre isso: quais são as capabilities que temos de desenvolver, ao mesmo tempo que tentamos fugir do que é conhecido. Queremos ir além de comportamentos como escuta, empatia, capacidade de encontrar soluções que sejam melhores para o cliente. E quando nos referimos a cliente, nos referimos também ao cliente externo: como vamos adicionar valor para ele a partir do que fazemos internamente? As competências técnicas, sem dúvida, sempre vão ter o seu espaço, mas penso que, hoje em dia, as competências comportamentais, essa capacidade de operar em um mundo mais incerto, de endereçar problemas de forma mais simples, mais pragmática, de ter foco, são outro ponto importante. Foco é fundamental, bem como prioridade. Isso, para o RH, vai ser crítico. As empresas vão ter de se reinventar, focar a sustentação dos negócios, e o RH, tendo foco, vai ser fundamental para contribuir de maneira significativa para isso. É um exercício importante entender o que adiciona valor aos nossos clientes, o que vai adicionar valor ao cliente lá na frente e poder assegurar que estamos a serviço disso e não de tantas outras coisas que muitos fazem de RH para RH apenas. Em alguns momentos, corremos o risco de sermos egocêntricos e de perdermos essa perspectiva do que faz a diferença. Hoje, não há mais espaço para isso. (Entrevista a Gumae Carvalho)

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