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A máquina e o homem bem alinhados

Na edição especial digital do CONARH a conexão entre humano e tecnologia se mostra viável e, mais do que isso, o novo caminho

de Gumae Carvalho em 7 de setembro de 2020
A invenção de Hugo Cabret: a tecnologia ajudando a desvendar o propósito do homem (crédito: reprodução)

O pesadelo do jovem Hugo é se transformar em uma máquina e ser engolido por um enorme conjunto de engrenagens. Mas o que significa o seu fim, no sonho, é, na vida real, o caminho para salvar a própria vida. É com a ajuda de um autômato que ele consegue dar um destino melhor para a sua existência e para a de outras pessoas. Podemos dizer, de forma mais abrangente, que é por meio de uma máquina, ou da tecnologia, que ele consegue consertar as coisas, ou colocar em prática seu propósito.

Homem, tecnologia e propósito são alguns dos elementos reunidos no filme A invenção de Hugo Cabret, de 2001, dirigido por Martins Scorsese e estrelado pelos jovens Asa Butterfield (Hugo), Chloë Grace Moretz (Isabelle), Sacha Baron Cohen (como o inspetor da estação de trem onde mora Hugo, Gustave) e Ben Kingsley (Georges Méliès), entre outros. E o filme esteve, de alguma forma, diluído na edição especial digital do CONARH.

Só para lembrar um pouco da história: um garoto de 12 anos (Hugo) vive sozinho numa estação de trem após a morte de seu pai e tio, ambos de uma família de relojoeiros. No dia a dia, Hugo vai se desvencilhando do olhar atento do inspetor Gustave enquanto procura a peça que pode ajudá-lo a consertar um autômato, única herança de seu pai antes de morrer. É quando o adolescente conhece Papa George e inicia um conturbado e apaixonante relacionamento que desvenda quem, de fato, é aquele senhor, dono de uma loja de jogos de mágica e de brinquedos na estação: um dos criadores da magia do cinema.

Qual é o propósito das máquinas? Hugo conta que os relógios apontam as horas, os trens nos levam de um ponto para outro. E as pessoas têm propósito? Se o mundo é uma grande máquina, que não possui peça sobressalente, a resposta então é “sim”, todo mundo tem sua razão de existir, tem sua missão, sua parte a cumprir. No CONARH, encontramos bons exemplos de propósitos pessoais e profissionais bem alinhados.

Daniel Albuquerque, médico da Unimed, Daniel Forte, médico do Hospital Sírio-Libanês, Gustavo Campana, médico do Grupo Dasa, e Elicleide Pereira, enfermeira do SUS, contaram um pouco de suas experiências na linha de frente do combate ao novo coronavírus. Com a moderação de Sandra Gioffi, eles deram um bom exemplo de como o humano se sobressai em um mundo cada vez mais tecnológico e em crise graças a uma pandemia. De nada adiantam os equipamentos de ponta de uma UTI sem o olhar atento e o acolhimento de médicos e enfermeiros. Esses profissionais souberam estruturar equipes, ficaram longe de pessoas queridas e, em alguns casos, acabaram se sacrificando no trabalho ou na missão de salvar vidas.

E os temas propósito e missão também estiveram presentes em outras frentes.

Os anticorpos corporativos

Em um determinado momento do filme de Scorsese, o velho Papa Georges relembra quem ele era antes de se tornar dono da pequena loja de brinquedos na estação. Esse é um ponto importante para trazer de volta o grande Méliès, aquele criador de sonhos em forma de filmes. Essa volta ao passado, aos propósitos que o motivaram a criar seu próprio cinematógrafo (uma vez que os irmãos Lumière não quiseram vender-lhe o deles), é o que dará forças para seu renascimento. É o resgate de quem é, na essência, Georges Méliès.

E em uma empresa, o que isso significa? Ricardo Guimarães, presidente da Thymus, apontou um caminho na palestra O RH pé no chão: idealismo ou pragmatismo?, moderada por Caroline Carpenedo. Depois de explicar a origem do nome Thymus (que vem de timo, que é uma glândula que participa da regulação da defesa imunológica do organismo), ele deixou esse caminho mais claro. Como a função do timo é a de defesa, ele precisa reconhecer quem é o “diferente” que está no organismo. Para tanto, ele tem de conhecer bem o tal organismo, sua identidade, suas características. Somente assim, essa glândula vai atuar como deve, impedindo o que é diferente de causar algum mal. E como isso funciona numa empresa?

É olhar para o que a compõe, para sua história, para seus valores e para seu propósito. São esses alguns dos anticorpos necessários para enfrentar algumas das mudanças do mercado – e para não ficar ao sabor dos ventos das pesquisas de… mercado. Nada contra tais pesquisas, nada contra os dados, apenas uma preocupação em conhecer o que diferencia uma empresa, a sua empresa.

Um exemplo que vem à cabeça é o da Mercur, que oferece ao mercado uma linha de produtos nas áreas de educação e saúde “para atender às necessidades e criar relacionamento com as pessoas”. Sim, seu propósito está diretamente ligado ao que ela oferece. E para chegar a ele, a companhia fez uma espécie de imersão em sua própria história para saber o que motivou os fundadores, em 1924, a criá-la… E dessa viagem ao passado, ganha mais força o motivo de ela existir: “a Mercur existe para melhorar a sua vida e a de todos ao seu redor. A gente desenvolve produtos e projetos nas áreas de saúde e educação, que ajudem as pessoas a explorarem suas habilidades e potencialidades da melhor forma possível.”

Ricardo Guimarães: olhar para a própria história e buscar o que diferencia a empresa
Ricardo Guimarães: olhar para a própria história e buscar o que diferencia a empresa

Um sorriso entre três

Uma historia dentro do filme de Scorsese que talvez resuma bem a interação entre tecnologia e humano, e que provavelmente passa despercebida, é a do inspetor da estação de trem. Interpretado por Sacha Baron Cohen, ele ilustra a passagem do homem máquina, o homem não-homem, para o homem “humano”, se é possível afirmar isso. Sempre acomopanhado de seu fiel parceiro, Maximilian, um cão doberman, no ínicio do filme é quase dificil perceber quem é quem. Calma, explico: os corpos são esguios, atléticos; ambos cumprem obstinadamente a mesma missão; e, em alguns momentos, compartilham os mesmos hábitos e movimentos. Só que o inspetor possui uma prótese mecânica na perna esquerda que dificulta seus movimentos. É a tecnologia atuando em um corpo sem coração (ele é impiedoso com as crianças), transformando-o em uma extensão deteriorada de si mesmo.

Mas, com o desenrolar da história, o inspetor vai se transformando. É colocado diante do amor e da paixão pela bela florista da estação, e também diante de seu passado: uma criança órfã, assim como Hugo, que passou sua vida em um orfanato. E é nesse encontro com o passado, talvez (e mais uma vez) que vem a mudança. Qual era o propósito que ele queria mesmo para a vida? Ao fim, o inspetor já mais “humano” se mostra mais bem integrado à tecnologia, com uma prótese nova (criada pelo jovem Hugo), que não faz barulho e que o serve muito bem. A tecnolgia é o meio para ele, não dificultando mais sua vida e seus afazeres. Sim, ele até esboça um sorriso (tudo bem, ele aprendeu três tipos de sorrisos…)

Carlos Piazza: humanos fazendo coisas de humanos; e máquinas, coisas de máquinas
Carlos Piazza: humanos fazendo coisas de humanos; e máquinas, coisas de máquinas

A tecnologia é meio, não precisa de ética, afirmou o darwinista digital Carlos Piazza, na palestra moderada pela Eliane Aere, Tecnologias e humanismo: o mundo high tech e high touch. Ele é categórico: humano tem de fazer atividade de humano, e máquina, coisas de máquina. Não há como competir com a capacidade de cálculo de um super computador. Perdemos, e feio. Temos de nos voltar para aquilo que somente nós, humanos, podemos fazer (ao menos por enquanto, grifo meu). E o que nos diferencia das máquinas e demanda de nós atenção e prática, sobretudo nas empresas? Pensamento crítico e análise da ambiguidade. São essas atividades que sustentam o humano em seu ponto mais alto e inigualável (por enquanto, grifo meu, de novo). Mas são atividades pouco exercidas em muitas organizações (por enquanto?).

E nesse (admirável) mundo novo, mundo VUCA e altamente tecnológico, Piazza sugere às empresas mais algumas coisas. Uma delas é trocar o clássico ROI (retorno sobre o investimento) pelo ROT (retorno sobre a confiança, de “trust”) e pelo ROX (retorno sobre a experiência). O que está na essência desses conceitos? O humano! É da relação humana que surge aquilo que chamaram um dia de “fio de bigode”, a certeza de que o acordado não sairia caro, por exemplo. E é o humano no centro das ações, o foco em receber ou para usufruir da melhor experiência possível com uma empresa, seja como consumidor, seja como empregado.

E esse lado humano ganhou destaque também na palestra de Dave Urich, cofundador e diretor no The RBL Group. Com a moderação de Pedro Bueno, Ulrich falou sobre o costumer centricity e sua importância para a área de recursos humanos. Colocar o cliente no centro é o melhor caminho para enfrentar momentos turbulentos. Mas e como seria essa relação com o RH? Mediada pela tecnologia? Sim, mas sem perder nunca aquela proximidade e empatia que só os humanos possuem.

Aliás, empatia também é a dica de Ulrich para o RH se relacionar melhor com outras áreas ou com o CEO da empresa. De nada adianta ao o profissional de recursos humanos puxar uma conversa com o presidente da empresa apenas com o assunto que mais amedronta ou aquece o coração do RH. Isso pode não gerar aquela conexão 100%. Mas se o RH busca, num bate-papo, um tema que é caro para o CEO e, a partir dele (RH), mostra como pode ajudá-lo, as coisas mudam de figura. É o caminho mais curto para o coração e para a atenção do C-level.

Mas houve outro aspecto em que ficou claro o papel ou a ajuda que a tecnologia pode dar para humanizar mais as relações. Pode parecer um contrassenso, mas em um momento em que muitas empresas foram obrigadas a colocar boa parte de sua mão de obra em casa (ou toda), no trabalho remoto, sobrou para as plataformas e ferramentas tecnológicas criar um novo espaço de convivência. E a humanização é facilitada para aqueles que entendem a necessidade e os caminhos para gerar mais empatia com o outro. No caso de Ulrich, a conexão se deu, também, pela possibilidade de conhecermos a casa em que ele vive, além de um pouco de sua família e história. Foram as fotos da esposa, dos filhos, dos pais… Entrar na vida das pessoas parece mais fácil do que antes, mas cabe aos líderes uma boa dose de capacidade para isso. É a tecnologia ressaltando o que é mais humano como valor: sensibilidade; empatia; criatividade. Esse é o core a ser desenvolvido.

Dave Ulrich: mostrou a casa, a família e a importância de o RH, também, olhar para o cliente
Dave Ulrich: mostrou a casa, a família e a importância de o RH, também, olhar para o cliente

Agir com o coração é a chave

Coração: essa é a chave. Literalmente – e não também. No filme, o jovem Hugo busca a peça que falta para colocar o autômato para funcionar. Ela deve ser inserida na altura do coração daquela máquina e se trata de uma chave no formato de… sim, coração. É a partir dessa conexão que as histórias ganham mais intensidade, os segredos começam a ser revelados e as vidas mudam.

Pouco antes da edição especial digital do CONARH, conversei com Murilo Gun, atualmente professor de criatividade e fundador da Keep Learning School. Murilo, que já teve empresa de tecnologia e esteve nos palcos de stand-up comedy, esteve na palestra

Criatividade no enfrentamento da crise, moderada pela Carol Gil. Em nosso bate-papo, ele comentou o que entende como coragem. É aquilo que faz a criatividade nascer e, mais do que isso, acontecer. Há muitos exemplos de pessoas que têm ideias maravilhosas, mas em menos de um minuto as escondem dentro de si, pelo medo de as apresentarem, de serem criticadas ou ignoradas. Ainda existem muitos gestores ávidos para minar a criatividade alheia, aqueles que se consideram o máximo, aqueles que sabem tudo, aqueles que menosprezam a contribuição do outro… Aqui entra a coragem, para Murilo: é o agir com o coração.

Agradeçamos, aconselha ele, a todo o pensamento lógico que nos trouxe até aqui. Consideremos e identifiquemos sua importância. Mas, agora, é o coração que vai ganhar mais destaque. É o amor que vai escancarar as portas das empresas e entrar nos escritórios, nos corredores, nas linhas de produção, nas salas de reunião, nas empresas diluídas no home office.

É a coragem que alimenta a criatividade, que lhe dá forças. É o coração ou o amor que sustenta a inovação. As máquinas ainda não amam. Essa é uma tarefa humana, apesar de nossos defeitos, de nossos erros – e com eles é que devemos aprender.

Ao construírem o cinematógrafo, os irmãos Lumière não atentaram para o potencial do que estava em suas mãos. A ideia de arte não parecia estar presente no início do cinema. Imaginava-se, nos primórdios, que seria apenas mais uma atração em feiras e exposições. Esse discurso, sem paixão pelas possibilidades da nova tecnologia, talvez fosse a pá de cal naquela máquina que só funcionava graças à imperfeição humana de não conseguir captar as imagens em uma velocidade de 24 quadros por segundo (daí, a ilusão de movimento). Mas Méliès soube olhar além e uniu a tecnologia com o sonho. As máquinas sonham? Curiosamente, essa é a pergunta que está no livro de Philip K. Dick que deu origem ao clássico Blade Runner: Androides sonham com ovelhas elétricas?. Neste outro filme, a resposta pode ser sim, basta lembrar da fala final do replicante Roy Batty: “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.” Um dia, quem sabe, as máquinas terão sentimento (detalhe, Blade Runner se passa em 2019…), mas até lá, somos nós.

É da capacidade de pensar criticamente, de analisar as ambiguidades, e de se entregar pelo outro, de sonhar, de criar, de amar, de ressignificar a vida que temos dentro e fora das empresas. De ressignificar nossas relações. Aliás, foi esse o tema central do CONARH deste ano: Ressignificar é preciso. E começa com cada um.

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Gumae Carvalho

Gumae Carvalho é editor de MELHOR – Gestão de Pessoas, revista oficial da ABRH Brasil. Jornalista especializado em comunicação organizacional, Gumae é autor de "Comunicação interna (em) revista" (editora Qualitymark).