Entrevista

Qual é o lugar da fraternidade na economia?

É preciso olhar com mais atenção para os impactos que as empresas causam – para o bem e para o mal

No meio de tantas mudanças, incertezas e receios, é possível esperar o surgimento de uma nova consciência no mundo organizacional e fora dele. De um lado, a atuação responsável e humanitária de muitas empresas reforça a importância de um propósito forte e de um engajamento verdadeiro em relação a causas importantes. De outro, vemos a chance de um altruísmo florescer, “como atitude individual a partir da consciência mais ampla de interdependência de cada pessoa em relação ao outro e ao seu ecossistema”, avalia Guilherme Callegari, sócio da Adigo Desenvolvimento.

Seria o ponto de pensarmos em qual o lugar da fraternidade, igualdade e liberdade na economia? Estamos diante de um período que reforça a necessidade de uma atuação mais responsável por parte das empresas?  

Estamos diante de um período que reforça a necessidade de uma atuação mais responsável por parte das empresas?
Em períodos de turbulência, como os que temos vivido no Brasil nos últimos anos, com uma crise econômica aliada à moral, que afetam poder público e iniciativa privada, e agora agravada pela pandemia da covid-19, somos naturalmente levados à descrença em relação às instituições e às lideranças. Paira a sensação de que a atitude de “cada um por si” prevalece.

Neste cenário, parece difícil perceber sinais que possam apontar para uma evolução em relação à atuação responsável das empresas ou de um engajamento verdadeiro em relação a causas relevantes para o bem comum. Tudo parece o velho teatro corporativo revestido de discursos sedutores, porém vazios. Por outro lado, vemos nascer empresas cujo negócio é justamente o promover impacto social positivo. Há também exemplos de organizações médias e grandes que investem em ações concretas visando o bem-estar de consumidores, comunidades de entorno, fornecedores e toda a sociedade.

Mas isso é uma tendência ou é mais um jogo de cena?
Podemos, a partir de sua pergunta, acrescentar se existe ou não verdade nesses movimentos ou se são apenas estratégias mais elaboradas para encantar – e enganar – o grande público com o objetivo de vender mais e ampliar o consumo. A partir do conceito da trimembração do organismo social, de Rudolf Steiner (1861–1925, filosofo alemão fundador da Antroposofia), é possível refletir sobre o alcance da relação entre fraternidade e a dimensão econômica, considerando a emergência de novos valores, novas formas de produzir e encarar a gestão das organizações.

Em 1919, em meio a um período de conturbações e incertezas causadas pela primeira grande guerra, Steiner apresentou o conceito para o governo alemão, mas não foi compreendido. A trimembração social é um tripé arquetípico que estabelece os parâmetros para uma vida social mais justa. Seus elementos, que foram consagrados na Revolução Francesa, são: liberdade; igualdade e fraternidade.

Callegari, da Adigo: “O indivíduo tem cada vez mais poder e é capaz de liderar a transformação”

Poderia falar mais sobre esses elementos?
No conceito desenvolvido por Steiner, liberdade está ligada ao aspecto espiritual e cultural, e representa a oportunidade de cada indivíduo buscar sua autorrealização. A igualdade se refere aos aspectos políticos e jurídicos, como princípio de equalização de tratamento a todos cidadãos.

Já a fraternidade, ou solidariedade, é associada ao aspecto econômico, ligada aos recursos, e talvez seja o âmbito que provoque mais estranhamento. Afinal, nos acostumamos com a deturpação do conceito, em que o aspecto econômico é associado à liberdade, estimulando um liberalismo radical, produtor de desigualdades. A relação entre fraternidade e economia merece um olhar especial. Se levarmos em conta o alcance e o poder que as organizações assumiram neste estágio globalizado e conectado do capitalismo, deveríamos nos debruçar com mais atenção para os impactos por elas causados. Para o bem e para o mal.

 E quais seriam esses impactos?
Há séculos, somos expostos ao lado perverso do sistema capitalista – a busca pelo lucro desmedido, a exploração da mão de obra, más condições de trabalho, a degradação do meio ambiente, populações excluídas e o estímulo ao consumismo desenfreado. Durante o século 20, algumas alternativas ao capitalismo, como socialismo e comunismo, tiveram espaço mas não se mostraram experiências sustentáveis.

O ponto é que há diferentes possibilidades de abordagem dentro do “sistema”. Há sim o “capitalismo selvagem” em que imperam a ganância e o individualismo, mas também há empreendedores e organizações para os quais a medida de sucesso vai além do lucro e do “retorno aos acionistas”.

Por mais que o capitalismo tenha demonstrado suas imperfeições, o princípio da “troca voluntária para benefício mútuo”, como forma de produção de riqueza e bem-estar, encontra nas organizações um espaço potencial para o desenvolvimento humano, aprendizagem, exercício da cidadania, colaboração e autorrealização.

Isso significa abrir mão do lucro?
Não, mas significa perceber que a abordagem sistêmica dos processos de geração de valor – capaz de integrar as necessidades e contribuições dos diversos públicos envolvidos – é uma forma mais inteligente, segura e rentável de se ganhar dinheiro. Especialmente no longo prazo. Por que então gestores de fundos de investimento estariam preocupados em investir em empresas comprometidas com a geração de valor compartilhado a partir de um propósito inspirador? Porque são bonzinhos? Não, porque sabem que essas empresas são mais confiáveis, sensíveis às oportunidades e capazes de garantir resultados futuros. Num mundo cada vez mais conectado, incerto e complexo, organizações que nutrem um ecossistema sadio são mais capazes de se adaptar a eventos críticos, antecipar mudanças e construir vínculos mais duradouros.

E como entra a trimembração social nesse contexto?
Nessa perspectiva, ela pode ser espelhada diretamente no modelo de gestão: estruturas mais horizontais e participativas promovem igualdade e transparência nos processos de tomada de decisão, integrando colaboradores e outros públicos relevantes. Há liberdade para sustentar diferentes pontos de vista e a diversidade cultural torna-se ativo. Os indivíduos são respeitados em sua singularidade e estimulados a realizar seu potencial. Fraternidade na economia vai bem além da responsabilidade socioambiental, presente no relatório anual de tantas empresas como “prestação de contas”, mas distante das crenças e de ações efetivas no dia a dia.

Há, também, exemplos de iniciativas como contrapartida a ações destrutivas, ou para a remediação em relação a acidentes, em que se criam fundações para apoiar a recuperação de áreas degradadas e populações afetadas, como nos casos dos desastres de Mariana e Brumadinho. Isso não dizer que práticas assistenciais não sejam necessárias. Não é disso que se trata. Significa pensar o vínculo entre fraternidade e o core business como alavanca do próprio sucesso da empresa.

Nesse sentido, “confiança mútua” entre pares pode significar uma relação ganha-ganha em que todos se fortalecem a partir de um propósito comum.

O advento da economia compartilhada, impulsionada pelas plataformas digitais que facilitam a aproximação de indivíduos e empresas com interesses convergentes, é expressão dessa mentalidade. Seja em relação à mobilidade, captação de recursos, hotelaria, leilões, entre tantas outras áreas, vemos crescer a força do indivíduo e das comunidades que se desenvolvem a partir da construção de valor compartilhado.

 E que outros negócios podem surgir dessa economia compartilhada? Como parte dessa corrente, nota-se também o surgimento de modelos de negócio inovadores que estimulam a “microdoação” atrelada à compra de um produto ou serviço. Já nos modelos “one for one”, cada item adquirido pelo consumidor representa uma contrapartida direta para públicos necessitados.

Há também empresas comprometidas em zerar o desperdício de embalagem ou desenvolver produtos exclusivamente a partir de material reciclado, integrando comunidades de catadores na cadeia produtiva. São exemplos de iniciativas que propagam o consumo consciente.

Seria um fomento ao altruísmo?
O altruísmo pode emergir, então, como atitude individual a partir da consciência mais ampla de interdependência de cada pessoa em relação ao outro e ao seu ecossistema. Para Daniel Burkhard – fundador da Adigo, esse impulso se dá mesmo que como uma forma ampliada de individualismo: na medida em que autoconsciência se expande, o impulso altruísta vai além das relações íntimas e familiares, na direção da comunidade, da cidade, do país, até chegar ao nível da consciência planetária de pertencimento.

Assim, o egoísmo – como amor exagerado em relação aos próprios interesses – se conecta com a busca altruísta de trabalhar para o bem comum, já que os próprios interesses passam a ser também os interesses do coletivo. O altruísmo torna-se impulso para engajar e proporcionar significado a pessoas e organizações.

E vivemos uma era propícia a essas mudanças?
As condições do contexto são favoráveis a uma abordagem mais holística, integradora e inclusiva. Especialmente neste momento. Talvez uma das principais lições que este contexto de pandemia proporcione seja a percepção da condição de interdependência a que estamos submetidos: estamos conectados e dependemos uns dos outros para enfrentar, com autonomia e cooperação, tempos de incerteza e desafios cada vez mais complexos.

O indivíduo, consciente e em rede, tem cada vez mais poder e é capaz de liderar a transformação nas organizações e na sociedade. Talvez agora, 100 anos depois de Steiner expor o conceito da trimembração social, estejamos mais aptos enquanto humanidade para estimular a fraternidade na vida econômica e gerar bons frutos hoje e para as próximas gerações. [Gumae Carvalho]

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